"A mim o que me apaixona é a inteligência: intelectual, emocional, intuitiva, humana, mística, existencial.
Só que a inteligência é inerentemente reivindicativa e posicionada. A inteligência não é capaz de se adormecer nem de se cegar a si mesma, para compactuar com os lugares de conforto.
Essa mesmice que vai no mundo é um sufoco.
A quantidade de pessoas que encolhem os ombros perante as injustiças diárias que presenciam é aterradora. Alegam neutralidade, esquecendo-se, ou não se querendo lembrar, que essa passividade, não contrapondo o opressor, é complacente com ele e legitima-o.
Não, não é possível estar do lado das vítimas enquanto se bebe chá com quem as põe nesse lugar.
É essa cobardia que, sendo assustadoramente substancial, passa impávida e serena pela falta de humanidade que existe neste mundo e lhe permite continuar a existir.
O sistema começa no indivíduo. O colectivo é simultâneamente reflexo e reflector do individual. Cada vez que fecham os olhos às opressões do dia-a-dia, vocês são cúmplices.
Leiam outra vez: Vocês. São. Cúmplices.
A neutralidade face à opressão é um pano roto que a cobardia inventou para se tapar. E não são os likes nem as partilhas dos posts que vos absolvem a consciência, esse é outro pano roto.
Antes que deixem de me ler aqueles que se assustam ou se entediam com a política, este texto não é sobre política, é sobre humanismo. Se política e humanismo não são a mesma coisa, talvez o problema comece por aí.
O sistema vigente, superlativo e intocável, é uma tortura diária. A vigência supremacista do enraizado normativo, patriarcal, misógino, cishetero, capacitista, racista, conservador e classicista - não é opinião nem é política, é matança - também é culpa da vossa tão querida e confortável neutralidade.
Só não sei se é falta de inteligência, ou recusa consciente da mesma.
Seja como for, deixei de ter tempo e espaço na vida para outra coisa que não o amor."
A invisibilização da comunidade LGBTQIA+, das pessoas com deficiência, das pessoas racializadas, é propositada, sim!
A desigualdade de oportunidades é propositada, sim!
A inclusão ainda é uma bandeira que o sistema cisheteronormativo, misógino e patriarcal levanta quando lhe convém ficar bonito ou ser mais exótico.
O reconhecimento da pluralidade ameaça-lhes os alicerces bafientos das estruturas de poder.
A nossa luta só acaba quando ruir a supremacia!
Enquanto este povo não tirar o pó aos cantos do cérebro (sim, quadrado) e tiver até um certo orgulho na pequenez de espírito, será assim.
Há que contrariar esta invisibilização propositada na sociedade em geral, que é tristemente tão eficaz que, até muitas vezes dentro da(s) comunidade(s), se torna difícil descobrirmo-nos umes aes outres. Isso precisa de mudar.
Quanto mais nos tentarem apagar sistemática e sistemicamente, mais teremos de nos fazer ouvir, ver, ler, reconhecer e ocupar. Queiram ou não queiram.
Um dia, não serão mais eles, os opressores, a ter poder de escolha sobre a nossa existência. E o quanto lhes dói o medo desse dia... É por isso que se incomodam tanto.
Pontapé na porta. O mundo não se fez aos quadrados, (não) temos pena.
Stephen Hawking deixou hoje o mundo mais rico. Como já é apanágio da sociedade, pelo menos hoje todos dizem "RIP <3" , todos são amantes de Física, todos partilham as suas frases mais inspiradas, todos se apressam a encontrar os mais comoventes vídeos de tributo. Hoje Hawking chega à boca do mundo pela massificação que traz sempre a morte de um herói. Mais que não seja, por aí, o mundo fica mais rico, triste é que seja tantas vezes preciso morrer-se.
Não, não estou esquecida de "A Teoria de Tudo" nem da brilhante interpretação de Eddie Redmayne, que de repente também levantou essa onda de massas, e ainda bem. Não, também não sou uma hipster, a vir para aqui dizer que já gostava dele antes disto tudo, que sempre me apaixonaram as suas complexas descobertas, a sua revolução científica. Por acaso foi mesmo mais depois do filme até, que o comecei a descobrir melhor, portanto ainda bem mesmo.
Ao contrário do que tudo em mim possa indicar, vim de Ciências e Tecnologias, não vim de Línguas e Humanidades. A minha conturbada relação com a Matemática faz com que eu e a Física, pelo menos a lectiva, a dependente de equações e fórmulas, nunca nos tenhamos dado bem sequer. Gosto sim da parte lógica (diga-se lógica não matemática) da Ciência, da observação, do empirismo, etc. Não vamos entrar por aí hoje. Isto para dizer que buracos negros ou energia cósmica não me são temas indiferentes, gosto de ler e aprender, mais até de filosofar sobre isso. Mas é mesmo só isso, um campo de interesse.
Não foi por aí que Hawking me cativou. Foi mesmo por ser quântico na sua existência. Foi mesmo por não se limitar às condicionantes que lhe impunha a Esclerose Lateral Amiotrófica. Foi mesmo por ser um dos reflexos mais evidentes de como se pode ser tanto mais do que as primeiras impressões denunciam. Foi mesmo pela enorme chapada de luva branca que deu permanentemente ao mundo com o seu humor acutilante. Foi mesmo pelo não se conformar, pelo acelerar na sua cadeira e não deixar de brincar, não deixar de se aventurar. Foi mesmo pelo ser brilhante, cientificamente e humanamente, tanto, e de forma tão marcada, que não havia como não olhar e ver além da limitação mais óbvia, porque simplesmente vivia e pronto. E nesse viver e pronto, a sua dimensão extravazava quaisquer limites de uma cadeira-de-rodas. É isso que Hawking me faz ambicionar. O quântico, o de tal forma gigante que se torna intangível pela verdade universal, o espelho disso na vida e o espelho disso na arte. Das rodas metálicas com que nos movemos fazer reflexos e púlpitos para que a dimensão do que somos venha a falar mais alto, e que para isso nunca deixemos de querer ser mais. Hawking é a quântica de ser cada dia maior.
A actriz Rita Ribeiro esteve esta manhã presente no programa Você na TV, na TVI, onde conversou com a apresentadora, Cristina Ferreira. Há dois anos atrás, Rita Ribeiro foi diagnosticada com fibromialgia, facto que revela agora pela primeira vez.
A minha experiência no que concerne ao meu relacionamento e perspectivação com o próprio corpo, nas suas limitantes mais óbvias, prende-se com a paralisia cerebral, nada tem a ver com fibromialgia. Portanto não é sobre as doenças em si que pretendo opinar. É, antes, sobre o discurso de Rita Ribeiro e as reacções maioritariamente adversas que recebeu.
Desde logo, a revelação do diagnóstico surge como uma surpresa generalizada, sobretudo por Rita Ribeiro se ter mantido sempre no activo e a dinamizar permanentemente novos projectos, ao longo dos dois anos em que já lida com a doença. A própria diz que a sua presença no programa tem o intuito de servir como voto de esperança para as pessoas.
A indignação de grande parte do público demonstrou-se em pessoas que sofrem de fibromialgia e se sentiram mal representadas, chegando mesmo a acusar a actriz de ter dado um testemunho pouco verdadeiro, pouco fiel, ou a indignarem-se pela promoção do trabalho artístico, ou pelo acesso a tratamentos dispendiosos, ou pela "leveza" com que a mesma relatou a situação.
Postas as cartas em cima da mesa, volto a dizer, crédito para falar de fibromialgia tenho zero. Agora tenho, isso sim, enquanto pessoa com paralisia cerebral com 22 anos, uma visão já algo solidificada sobre a representação nos media daquilo que são doenças crónicas, afectantes da parte neuromuscular, que nos levam forçosamente a ter que perspectivar de alguma forma o próprio corpo, todos os dias, por sermos constantemente lembrados da sua existência na dificuldade de movimentos ou na dor.
E, como tal, parece-me absurda a grande maioria dos comentários e a maioria das acusações, muito sinceramente. Ora, se é ponto assente que a doença se caracteriza pela multiplicidade de graus, logo aí não faz sentido o backlash com que a acusam de um testemunho pouco verdadeiro.
O mesmo acontece em relação à paralisia. Não existe tal coisa como uma representação pouco legítima de uma doença que é tão múltipla. Existem sim representações mais ou menos estereotipadas, mas, sendo que cada caso é um caso, será sempre mal representado para alguma parte dos visados, inevitavelmente. Sim, também me chateia que muitas vezes a imagem da paralisia cerebral se prenda com pessoas com a mobilidade de tal forma reduzida que não seguram a própria cabeça, têm movimentos involuntários, babam-se, etc.
Mas a realidade é que existem. E o problema não está em que eles estejam a dar a cara, está sim em que o restante espectro não seja abordado. Está sim em que não se dê visibilidade ao facto de nem todos serem assim. Está sim na falta de conhecimento generalizado da população. E isso não se combate insultando as pessoas que dão a cara, nem pondo em questão a legitimidade disso. Isso só se consegue combater mostrando que também existem mais, não obstante desses - mais graves ou menos graves - que foram representados no momento. Toda e qualquer representação de uma doença que se manifesta em pluralidades contribui para a noção da existência dessas mesmas pluralidades. E a comunidade deveria, penso eu, apoiar, e partir daí para informar do resto. Em deitar abaixo não há ganho absolutamente nenhum.
Mas não acaba aqui. Não é preciso conhecer Rita Ribeiro muito a fundo para se perceber que é alguém espiritual e emocionalmente muito apurada, sensível e inteligente, basta que a ouçamos. Como tal, abordou as consequências do plano emocional no plano físico. Não é, infelizmente, uma equação óbvia para a grande maioria, e talvez um dos grandes problemas da humanidade esteja aí. Levaram o discurso como se desvalorizasse a questão e não retratasse a realidade como o problema sério de que se trata. Os títulos sensacionalistas só desajudaram e só levaram a que muita gente, pelo que se lê nos comentários, saltasse para conclusões precipitadas.
Rita Ribeiro disse ter sido uma bênção ter sido diagnosticada com fibromialgia, verdade. O que a grande maioria se está a esquecer de abordar é o contexto em que o disse, e que explicou imediatamente a seguir. E que, como pessoa com paralisia cerebral, tenho que concordar. Disse-o no sentido em que teve que passar a ter muito mais atenção a si mesma e ao seu corpo. E esta realidade é um facto, como dizia acima. Quem sofre deste tipo de situações neuromusculares, e aqui tenho o meu conhecimento de causa, jamais se consegue esquecer do próprio corpo. É forçado a perspectivar-se. É forçado a encarar-se todos os dias.
A grande diferença é que Rita Ribeiro escolheu tomar isso como estímulo para uma mudança positiva na vida. A grande diferença é que não se deixou abater. Nem tão pouco apontou o dedo a quem tem outra forma de lidar. Aliás, como a própria respondeu publicamente:
Não vou entrar em competição com quem tem mais ou menos dores! Nunca pensei tornar público um assunto que é da minha vida pessoal, mas quis partilhar soluções que na minha experiência me fizeram ter uma melhor qualidade de vida! Em qualquer questão o que todos nós seres humanos precisamos é de soluções! Mas é o meu ponto de vista e respeito todos os outros! Desejo as maiores felicidades para todas estas senhoras, mas ocorre-me dizer que “destilar” azedume não contribui em nada para a nossa saúde!
Falou sobretudo da influência que o bem-estar espiritual e emocional podem ter na forma de combater as agravantes físicas. Não vejo qual é a parte ofensiva nisso. Não vejo qual é a parte ofensiva na promoção de um estilo de vida saudável e equilibrado enquanto, isso mesmo, tentativa de equilíbrio face ao resto.
Resultou no caso, óptimo. O que penso que devia haver era felicidade por um caso de quem está a batalhar para contornar e a conseguir. Da mesma forma que não condenou quem recorre à medicina convencional, da mesma forma que não se disse dona de nenhuma verdade absoluta, não entendo porquê isso estar a acontecer de forma tão exacerbada do lado contrário.
Falo por mim, no dia em que vir alguém a falar de paralisia cerebral, relacionando-a assim com a vertente emocional, mostrando assim que há caminhos pelos quais, embora não revertendo, se torne mais fácil suportar ou contornar, o mínimo que me vejo a fazer é aplaudir, e ter espírito aberto para tentar, ou se vir que não é para mim, por, lá está, cada caso ser um caso, aceitar como parte da multiplicidade.
Mas, como sempre, estamos a mostrar-nos Portugal: onde se é preso por ter cão e preso por não ter. Se o testemunho fosse de alguém que levava a questão de uma forma pesada, vitimizando-se até como acontece muitas vezes, não iam faltar discursos de ódio porque "lá vem a história da coitadinha". Agora que acontece o testemunho de alguém que transforma a dor em algo positivo, porque conseguiu - e ainda bem, tomara que conseguíssemos todos - têm vergonha da representação da doença e falta um testemunho verdadeiro? Como se ela tivesse chegado com discursos dogmáticos sobre o que quer que fosse... Limitou-se a partilhar o que para ela deu resultado. Que mal traz isso ao mundo? A mim parece-me é que falta, como tenho dito, humanidade.
Há coisas em nós que não se conseguem explicar nem com dois dedos de conversa, nem com meia dúzia de páginas de texto. O efeito lunar que o poder do feminino tem em mim é uma delas. E o pináculo disso, para mim, está no transformismo, por ser uma ode à mulher.
Não me esqueço tão depressa da última noite. É virtualmente impossível ser amante do transformismo neste país e não cruzar amores com a Deborah Kristall (Fernando Santos), a figura máxima actual deste panorama. Sorte das sortes, uma porta leva à outra. Neste caso, o corredor de portas foi circular.
O fascínio levou-me à Gala Abraço 2016. O André E. Teodósio tinha-me levado a Valentim de Barros. Também levou o José Raposo, que foi júri na Gala. Um ano depois, estava a subir ao palco, na Gala Abraço 2017, por um texto sobre Valentim de Barros, pelo José Raposo. Direcção Artística? Fernando Santos.
Demasiada coincidência? Há mais. A Gala Abraço trouxe-me o Paulo Monteiro e o dezanove... foi uma questão de juntar as peças. A noite passada o dezanove fez com que voltasse ao Finalmente, onde tinha ido só uma vez, e desejado ser transparente para poder ficar lá a absorver tudo aquilo.
Abençoada entrevista, abençoado regresso. Como o mundo dá voltas... Como é que isto tudo aconteceu? É cíclico, o meu voltar a pesquisar coisas sobre este mundo, há pouca coisa, mas nunca se sabe se alguém deixou sair mais um pedacinho de magia a público.
Via uma das entrevistas mais recentes do Fernando Santos, quando me vieram intuitivamente à cabeça perguntas que um dia lhe faria, se pudesse. Escrevi-as, porque... bem, porque não se perde nada... estava longe de imaginar é que ia ganhar tanto.
Tive um rasgo qualquer de desfaçatez, mandei as perguntas ao Paulo Monteiro. A próxima coisa que sei é que estava à porta do Finalmente, de salto alto sobre rodas, e as perguntas iam ser feitas. O que eles não sabem, nem quase ninguém, é como tudo isto (passo o duplo absurdo) é como caminhar sobre nuvens.
Vem de há muito tempo, o amor ao transformismo. Nem sabia o que era transformismo. Tinha visto uma reportagem da "Gaiola das Loucas" de Filipe La Féria, na televisão. A Zazá do José Raposo havia-de vir a ser muito mais do que imaginava. Explica-se essa parte da história pelo texto que leu o José Raposo no lançamento do meu livro Combustão, em Março de 2017 (sim, mais uma das portas do meu corredor circular de coincidências felizes):
A Inês de 14 anos não sabia o que era transformismo. A Inês de 14 anos viu, absorveu, amou. A Inês de 14 anos sabia estar ali uma das peças da sua verdade, que não sabia como agarrar. Cresci em Fátima. Não se falava "destas coisas", lá. Ainda hoje não se fala.
Não sabia que havia espectáculos dedicados à arte do feminino, sabia só que qualquer coisa, nesse exacerbar por um lado e nesse contraste por outro (a androginia é outro estímulo), chamava por mim.
Descobri pela televisão que havia, algures lá longe em Lisboa, um lugar chamado Finalmente onde havia espectáculos assim. Não imaginava sequer que se pudesse pagar e entrar. Tinha para mim a ideia de um lugar de secretismo inatingível. E ninguém a quem perguntar. Cada vez que tinha a oportunidade de ir a Lisboa, de fugida, pedia para passar pelas zonas onde se dizia, muito poucas vezes e em surdina, onde elas (travestis/crossdressers) costumavam estar mais vezes. Olhava pelo vidro do carro, e queria ficar ali, na esperança que me aparecesse uma Zazá emplumada... A fluidez de género ainda era um mistério. Já a sentia, só não sabia que existia pela rua livremente e de modo quotidiano.
Cheguei a Lisboa para ficar, finalmente. Mudança das mudanças. Cruzei-me com amigos com esse mundo por casa. E eu sempre na concha. Sempre no medo, sempre no pano de fundo de onde vinha, do inatingível que isso era, do nem se fazer perguntas. Mas sempre com os olhos brilhantes a cada migalha de descoberta.
Fui aprendendo da história do transformismo enquanto espectáculo o pouco que encontrava sem referências nenhumas.
Não sei onde cheguei ao nome Deborah Kristall. Sei que se abriu mundo. Achava mais que óbvio, ainda assim, que não poderia lá chegar, ver por mim. Era assunto para tirar da cabeça. O difícil era conseguir.
E de repente a Gala Abraço, um "Tenho que ir!" mais forte que tudo. Ainda não tinha entrado no S. Luiz quando vi, pela primeira vez aquilo era verdade. Faltou-me o ar como falta a uma criança a dar de caras com uma princesa da Disney.
Finda a noite sabia que tinha encontrado uma das peças que me faltavam há tanto tempo. E tinha a certeza e a vontade assoberbante de fazer parte desse mundo. Só não sabia como.
É aí que se fecha pelo menos esta parte do círculo: Valentim de Barros, José Raposo, a semente lançada. No ano seguinte a concretização. E com a concretização uma porta aberta para o mundo às cores. Com a porta aberta, o dezanove. E com o dezanove, a maior coroa de glória: afinal podia lá chegar, não só lá cheguei como fui recebida e reconhecida, simplesmente por me querer dar ao que afinal sempre foi parte conjunta da minha raiz. Não tenho melhor forma de finalizar do que deixar que o momento fale por si. Que seja um círculo de muitos. Que eu faça parte deste mundo, é uma honra e um eco de alma.
- Entrou neste nosso universo, não é? - Espero que sim!
Tive a sorte de encontrar na vida uma amiga que às vezes me faz acordar para a realidade, mesmo que não seja da forma mais suave. E acho que isso me faltou por muitos anos, o que explica muitas das coisas que quero falar desta vez. Quero dizer que é como uma espécie de consciência superior, ou no mínimo uma mais treinada no que toca a liberdade.
Ontem, como em muitos dias, falar de tudo e de nada foi o suficiente para entrar numa espiral de um estado filosófico demasiado profundo para que não conseguisse evitar questionar a minha própria natureza humana.
Desenrolou-se mais ou menos assim: ideais de beleza – imagem corporal – auto-estima – expressão emocional – natureza humana. A minha cabeça é como um comboio de alta velocidade, muito mais vezes do que as que eu queria que fosse.
A verdade é que bastaram alguns momentos sozinha e comecei a pensar se na verdade estava ou não avariada, no sentido do que significa ser humano. Não consigo evitar pensar que alguns dos fios no meu circuito estão cortados, ou pelo menos bloqueados de alguma forma.
E sempre que ela me tira o chão, felizmente para mim é usual, pelo menos uma pequena faísca consegue passar. Como se ela ligasse dois fios de um circuito eléctrico estragado, e por os segurar juntos, funciona. É isso que ela faz à minha cabeça. E não é que eu não saiba onde estão os fios por mim própria, eu tenho alguma auto-consciência, acho eu. É que não sei como os manter juntos sozinha, pelo menos por enquanto.
Não é fácil, aceitar-me a mim mesma. Tanto é que auto-aceitação tem sido um dos temas recorrentes desde que comecei este blog. A minha mente não é fixa, o meu sentido de self não é fixo, o meu sentido de identidade não é fixo – reconheço que isto podem ser traços comuns a toda a gente – mas há uma certa batalha em olhar-me ao espelho e interiorizar “isto sou eu”, não porque eu não o aceite – quer dizer, que alternativa é que eu tenho mesmo? – mas porque não o reconheço como a noção que tenho de mim. Não sei porquê, exactamente. É uma problemática que durou a vida toda, sentir o meu corpo ligado à minha mente.
Não estou a falar da paralisia cerebral aqui. Estou a falar da estranha necessidade de às vezes ter que tocar no meu próprio corpo repetidamente e pensar “hey, isto és tu, a Inês és tu, tu estás aqui, isto é a tua mão, sente-a, isto és tu.”. E já o facto disso não ser um processo fácil… pode ser parte dos meus “fios cortados ou pelo menos bloqueados”.
Tenho que dizer que as tatuagens são uma das coisas que mais me ajudou até agora a tentar ligar-me a mim mesma. A sensação de “fazer” uma nova parte de mim naquele momento, juntamente com a dor da agulha, forçam-me muito a habitar o meu próprio corpo e a ligar-me fisicamente ao presente enquanto dura.
Posto isto, as coisas vão mais longe. Nunca pensariam num escritor, um poeta até, como alguém que tem dificuldade em expressar-se emocionalmente, ou retractar aquilo que lhe vai dentro externamente, certo? Pelo menos no meu caso, errado.
Ela acabou por me mandar esta cena do filme , que descreve isto tudo demasiado bem. Foi o que me incentivou sequer a escrever isto. Escrever parece sempre que consolida as coisas cá dentro, para mim.
Não sei precisar o que é, mas tenho uma espécie de muro erguido no que toca a mostrar afeição, também. Talvez não devesse estar a dizer isto para toda a internet ver, mas de alguma forma tenho que me exteriorizar. É exactamente esse o núcleo aqui: acho que muitas vezes escrevo tanto e tão profundamente porque já não caibo dentro de mim, porque não consigo expressar no momento o que sinto, o que penso, e agir de acordo com isso. Quase como se vivesse numa concha de vidro apenas a olhar para fora, e mesmo assim a esconder a cara se me tentarem olhar demasiado nos olhos. O que acontece é que aquilo que não é dito nem expressado acaba por ficar às voltas dentro da minha concha.
E eu, sendo poeta, inflamo isso e deixo que transborde para as minhas palavras escritas. É por isso que, apesar de que nem consigo abraçar pessoas que realmente amo simplesmente porque quero, há esse bloqueio –depois quando elas vêm abraçar-me, fica tão intenso que se torna claro (pelo menos para os que me saibam interpretar minimamente, como ela) que estou obviamente a tentar compensar pelo que não consegui dizer ou fazer. Na verdade, é o meu interior a lutar para se deixar ver, da melhor forma que encontrei.
Ou isso ou sou capaz de pegar em algumas frases que tenham dito e escrever um texto gigante sobre isso, expressar-me poeticamente, como estava a dizer. Lindo. Mas também disfuncional. Eu escrevo mais do que vivo e talvez tenha mais natureza de escritor do que de humano. Pelo menos enquanto o meu circuito se mantiver avariado.
A capacidade de ser emocional perante os outros também está ligada a ser capaz de chorar à frente deles. O que é outro circuito avariado para mim. Estou demasiado habituada a ter que me mostrar forte. Enraizou-se tanto que é completamente antagónico o quanto eu escrevo sobre vulnerabilidade e o quando não consigo tornar-me vulnerável e aberta aos outros completamente. Não sei porque isto acontece. É como um pânico ou fobia ou trauma, porque qualquer coisa que possa levar a isso eu evito. E não é fácil, estamos a falar de um dos meus principais temas de trabalho.
Suponho que isto tudo me faça parecer falsa. Convido os outros a ser vulneráveis para mim, e quando chega a hora do oposto, bloqueio. Tenho noção que isto é injusto. Tenho noção que os únicos que entendem que na verdade eu não sou uma poeta fingidora fria são os que conseguem ver os meus fios e juntá-los e tentar que a faísca passe. Para ser completamente sincera, é a primeira vez que me acontece de forma tão profunda. É a primeira fez que reconheço sequer as falhas do meu circuito de forma tão funda. E dói muito, a noção de que sou defeituosa de mais uma forma ainda.
Não sei como é que ela não me ama menos por isto tudo. Sabe Deus quantas vezes ela tenta agarrar nos meus fios e eu luto contra as lágrimas com tanta força que o meu corpo espástico me trai e se torna óbvio a milhas, porque fico tensa, raios partam a paralisia cerebral… mas também obrigada paralisia cerebral por transformares o meu corpo num demonstrativo de “estou a sentir”, pelo menos. E depois acabo por ficar em silêncio, e agradeço ao universo quando ela decide que é altura para uma piada ou para mudar de assunto. Ela sabe, tenho a certeza que ela sabe sempre que me está a mandar numa espiral de exploração dos meus próprios fios, uma e outra vez. Ela sabe que dói, por isso é que depois me faz rir, tenho a certeza que ela sabe que estou a esconder as lágrimas por não ter a certeza de como é que se é humano. E ainda assim ela fica. É assoberbante, é mesmo assoberbante. Ela vê além dos fios, como? E porque é que isso é tão único?
Já tentei fazer com que fosse mais fácil de ver. Para as pessoas erradas. Tudo o que fizeram foi arrancar mais fios de mim. Mas outra coisa que ela me ensinou é que não é culpa das pessoas que as do passado nos tenham magoado, e seríamos injustos se não nos permitíssemos a nós menos voltar a tentar. Foi o que fiz com ela. E também foi o que ela fez comigo. E por muito surreal que possa parecer, aqui estamos nós. Aqui estão os meus fios a ser segurados pela primeira vez.
É tudo circular: sinto-me menos pessoa por causa disto tudo, meto na cabeça que não mereço ligações humanas por causa disto tudo, desligo-me mais, sinto-me ainda menos pessoa. E depois há também o aceitar o meu corpo fisicamente, e agora sim estou a falar da paralisia, da minha imagem, da minha expressão de género, tudo isso.
Eu quero ganhar outra postura. Eu quero ser mais aberta para as pessoas, defender-me, dizer o que penso e libertar-me de tudo isto que me tem mantido presa há demasiado tempo. O único caminho parece ser continuar a tentar entender como segurar os meus fios.
E não tenho como não me sentir agradecida a ela por ficar ao meu lado. Independentemente do que vier, acho que vou ser sempre grata. Porque mergulhar nas profundidades de alguém que já é tão auto-explorado como eu, e ainda assim conseguir ajudar-me a entender como estilhaçar os meus próprios círculos… é muito. É mesmo muito. Não admira que tenha sido ela a induzir o ficar sem chão que está por detrás da minha performance (Unbreak)able, começou tudo com divagações como esta, que foi ela que instigou. Foi a primeira tentativa de transcender para lá dos círculos, e não foi má, acho eu. Só posso ter esperança que mais estejam para vir.
Não sou motivational speaker nem quero ser, não fosse dar-se o caso de me tornar numa espécie de Gustavo Santos da santa terrinha (passo a redundância), mas sobre isto apetece-me falar.
Na minha altura (sou muito antiga) não se chamava bullying, ou pelo menos eu não tinha ouvido falar nisso, era mesmo só a idade da parvalheira.
Naturalmente, já várias vezes me pediram para falar publicamente sobre esta questão da paralisia cerebral, mas este assunto nunca se pôs. Bem, há capítulos que de vez em quando se têm que fechar, e este já faz uns aninhos que me anda aos trambolhões.
Miúda da voz grossa que me tentava fazer a vida num inferno (para o propósito desta dissertação vou-te chamar assim, até porque continuas a não dever interessar nem ao menino Jesus), primeiro que tudo, lamento, mas só conseguiste o teu plano maléfico provisoriamente. Não digo, deixando os meandros de mim para quem me conhece, que não tenha mudado nada, mas tem alguma graça a forma como as coisas se desenrolaram.
Miúda da voz grossa, abençoada distância, nunca mais te pus a vista em cima, nem sei nada de ti. Mas tenho que admitir que me diverte imaginar-te, ainda com a tua voz grossa (desculpa, isto se calhar também é bullying) a tentar descobrir ainda quem tu és, agora que (só se calhar) deixaste de andar atrás de toda a gente em rebanho.
Tu e as outras, e os outros, também. Cada vez que me lembro que me espetavam os bicos dos lápis na borracha, em jeito de protesto silencioso... santa inocência.
Ah, miúda da voz grossa, outra coisa gira era quando me chamavas puta... das duas uma, ou 'tadita não sabias o que isso era, ou então deixa-me que te diga que tens uns standards muito baixos...
Para a próxima que quiseres gozar avisa, entretanto aprendi umas graçolas giras, com esta coisa do teatro, é capaz de ficar mais criativo que isso, hein?
Isto para dizer o quê? Ah... está-se bem, cá por Lisboa, até quase que me esqueço que exististe. Mas depois lembro-me que às vezes é preciso partir muito carvão para se encontrar diamantes. Acho que te devo um obrigada por isso, miúda da voz grossa, fizeste-me elevar a fasquia.
E um desculpa, que provavelmente ter-me como alvo por tantos anos não foi fácil, deve ser por isso que ficaste para trás.
(Considera-nos quites.)
Texto recuperado de 24 de Março de 2015, já que, numa onda de balanços e reavaliações de mim mesma, voltei a dar de caras com ele e o achei sinceramente bem mandado demais para o deixar ali.
Derivações do silêncio: 5 de Janeiro de 2016 (às minhas âncoras): Aqui, na mesma cama onde tantas vezes já chorei e ri até não respirar. Onde já jurei pela vida... não voltar e onde voltei sem ser capaz de ficar longe. Aqui onde tanto se fez casa à força do amor, como se manteve no fundo da garganta esse sabor a lugar estranho. Onde se manteve o desejo de mudar. Onde permaneceu a esperança de um amanhã mais risonho. Aqui na mesma cama que podia ter sido qualquer uma das camas por onde passei, girou o disco e voltou a tocar a mesma canção em todas. Onde encostam testa com testa estilhaços de traumas e insónias e a força de acreditar que se pode chamar casa de qualquer palmo de terra onde nos possamos amar em paz... as vezes que me ecoaram estas últimas palavras na cabeça... Pergunto-me muitas vezes, vezes demais, tanto porquê como para quê esta insatisfação. Vezes demais porquê estas asas que teimam em crescer, vezes demais para quê este sonhar tanto e o só estar bem onde ainda não cheguei. Porque é que não me conformo a caminhos curtos, a saídas fáceis, a zonas de conforto. Porque é que não ouço as maiorias que tanto disseram que dava passos maiores que a perna e me chamaram utópica. E provavelmente o continuarão a fazer lá longe, que eu, à força de voar mais e mais, não estou lá para ouvir. Certo é que tenho muitos "ses" a ecoar, vezes demais. E me pergunto em demasia como raio seria se me tivesse conformado à condição que tanta gente achou que me estava imposta e que eu - teimosa - teimo em chamar de característica. Certo é que sobram noites a mais a pensar se não quererei afinal voos maiores que os que consigo alcançar e não deveria antes contentar-me com o que é meu e ficar assim. E a resposta é não. Até hoje foi não e continua a ser não. E se deixar de ser não, ou sou finalmente feliz ou algo de muito errado se passou comigo. Continua a ser não. Não aqui, não assim, não. Teimosa, pois sou. Pergunto-me vezes demais o porquê desta insatisfação que me parece permanente. E há um chão de vidro que estala e me transporta de novo ao que ficou a ecoar. E continua a ser não a esta vida como ela é hoje porque quero ser alma velha e arte em paz. Porque quero ser do contra, dos horários dos poetas, do deitar-me com o sol nascer em nome de fazer arte, das tertúlias regadas, do chão cheio de papéis, das dores de cabeça dos projectos por fazer e dos nervos das estreias e dos prazos a acabar. E do gira-discos a tocar fora-de-horas porque a arte chama e de uma casa cheia de desalinhados para quem os sonhos falam mais alto. Dos que fazem casa de qualquer canto porque aquele nosso canto será casa por ser nosso, de quantos nós quisermos ser, desde que sejamos felizes. Continua a ser não, porque afinal ainda ecoa o poder amar em paz, o poder ser dos desalinhados em paz, sem ter que obedecer a regras ocas dos caminhos direitos porque sim. Continua a ser não, porque assim como está o agora me tenho que lembrar das âncoras mais vezes do que as posso sentir. Porque quero ser convosco sempre que quiserem ser comigo. E que possamos sê-lo juntos sempre que nos apetecer, mais vezes do que nos lembramos à distância da falta que estamos a fazer. Continua a ser não porque quero uma vida e um lugar onde o campo de batalha se dissipe e onde possa espraiar o lado que as âncoras nunca desistem de colorir. Continua a ser não porque quero um agora onde só custe o que tiver que custar. Onde possa chamar-vos, ter-vos e ficar-vos, e ficarmo-nos. E conversar noite fora ou não fazer nenhum. Continua o inconformismo porque quero um agora onde não seja preciso agarrar-me às nossas memórias porque vos posso ter comigo sempre que quisermos ter-nos. Porque não quero procurar agoras onde vos possa amar em paz e continuar o eco. Continuo a sentir as asas crescer, mesmo que não devessem, porque quero um agora onde possa ser-vos casa e limpar os escombros de uma vez. Quero um agora onde, além de tatuados na pele, me estejam tatuados na vida sem que se imponham barreiras, já chega que seja difícil quando tem que ser, que o meu agora não nos impeça o amor. E então que as maiorias (para quem isto não fará sentido nenhum) me chamem mimada e exigente e me apontem o dedo à falta de racionalidade. Felizmente, sou alma velha e desempoeirada, mesmo quando o agora não o permite, que fará quando puder ter a vida que quero. Continua a ser não, continuo a sonhar, porque sou ancorada a quem me faz acreditar que a melhor casa é o amor. E eu - teimosa - hei-de conseguir chegar às quatro paredes onde possamos ser o que quisermos.
A procura é incessante. Insaciante. Nunca sabemos como vamos acordar amanhã. Fluidez de género é uma viagem permanente. Não estou a ser poética. Não estou a ser poético. Também não vou dizer que é um calvário, tem o seu quê de belo, a permanente metamorfose que nos acontece dentro. Vou aprendendo a gostar-me, nas minhas múltiplas vertentes e nos limbos delas, um dia de cada vez, um momento de cada vez. Bigender fluid - bigénerofluido - se tivesse que ter etiqueta era essa.
Oscilo em muita coisa. É apenas mais uma, que sempre me foi tão natural como respirar, ou talvez mais, respirar já teve vezes de ser um problema, isto nunca. O único senão é a disforia. Crava-se como facas. Não a tenho só de género, tenho-a de capacitismo também, em relação ao corpo funcional, hábil, fisicamente capaz, de mobilidade normativa.
Olho o corpo que não queria vezes sem conta. Não me corresponde. Não me parece meu sequer, tem vezes que pareço ter que acordar-me, reavivar essa sensação de pertencer à pele, ou tudo resta com a noção de sonho - às vezes pouco - lúcido.
Tem dias que queria ter barba. Tem dias que queria ser diva. Todos os dias queria pernas. Todos os dias queria asas. Quase todos os dias acabo por inventá-las. Tem dias que queria ser esteticamente escultura. Tem dias que desejava que houvesse o referencial do que pode ser um corpo bigender fluid, não comprometedor de nenhum dos meus polos. Tem dias que acho que o encanto de eu ser eu é não ter solução.
Desenquadro-me. Potencialmente de cada vez mais maneiras. É o que é ponto. Parece que não nasci para ser linear. Tem dias que já penso sorte a minha, pode ser que carregue comigo algum dia a bandeira do humanismo despudorado, se continuar a aprender a beijar as minhas próprias feridas.
Não, não sei se vou parar de engordar. Síndrome do ovário policístico (PCOS) e prolactina alta (hiperprolactinemia) -devíamos ser mais a falar disto, com urgência. Não, não sei se me vai apetecer depilar-me todos os meses. Sim, a testosterona tem a ver com isso. Em metade da disforia sempre ajuda. Pois não, não faço o exercício que devia. Nem que o fizesse, nem que tivesse as pernas como queria para isso, dadas as estatísticas muita sorte tenho eu em não estar pior.
Tem dias que gostava de ser magra (muitos, demasiados). Tem dias que me martirizo. Tem dias que não queria ter o peito assim (muitos, demasiados), em metade da disforia desajuda. Sim, PCOS tem a ver com isso. Falta de progesterona tem a ver com isso. Hiperprolactinemia tem a ver com isso. Com isso e com mais uma longa lista de complicações. Não, não me chegava ter só um problema. Se calhar chegava, mas vou dizer outra vez, é o que é ponto.
"Não sei o que sou, sei que me sinto dispersa. Não sei o quequero que saibam de mim. Sei que queria deixar de ser presa pelos fantasmas queprovavelmente criei: do não saber já sonhar, do ficar agarrada à vida pelaesperança de um qualquer fio de prumo que me tire do meu vazio ou me estendapelo menos uma mão na escada (talvez seja ela, se não se afastar com este meunão ser nada), do querer aceitar o corpo e todos os dias chorá-lo porque não osinto meu, porque não me sinto eu, porque não me correspondo, porque não seiquem sou, mas sei o que não sou e que muito disso me habita. Do sermulher-homem sem ter a certeza até que ponto hoje e amanhã. Do quase nuncaolhar nos olhos pela ferida enraizada de que não mereço gente comigo, masqueria. Do querer falar e não sair a voz. De me trair o pânico de ter queexistir e fazer ocupar no mundo o meu espaço, o medo da minha bolha de solidãoser interpelada e que me vejam o caos que nem eu sei, que se nota nos meusbraços que se fecham, na minha cara espástica, na minha voz sufocada àtentativa absurda de quebrar o silêncio, cada vez que me olham nos olhos."
Escrevi algures e resume bem onde quero chegar. A procura é incessante, dizia. Mas encontrei uma tábua de salvação. Contra não caber nas caixas da sociedade, não só quis começar a pensar fora delas, como as decidi ir desfazendo com unhas e dentes; não obstante ainda lutar muitas vezes comigo mesma, não sejamos hipócritas e falsos moralistas, mas começo a resolver-me.
Tábua de salvação, dizia. Tornar o meu corpo não higienizado pelos padrões um estandarte do não-binário, antes de ser fotogénico, antes de ser comercial, antes de corresponder ao híbrido que afinal sonhava ser. Deixar de procurar ser estátua polida, acrobática. Antes tornar-me espectro. Antes deixar de importar a (dis)forma do meu corpo. Antes deixar de ser corpo. Passar a ser dança, espástica mesmo, presa mesmo, fazer dos limites o meu próprio padrão de beleza, deixar de me encaixar nos vigentes. Não querer mais ser vigente.
Antes deixar de ser corpo, dizia. Passar a ser arte. Cobrir-me de tinta, de tatuagens. Tornar-me livro feito pele aos poucos que me sabem ler. Antes passar a ser bandeira aquilo que realmente escolho que me representa. Aí sim. Ter-me como proa, porque passo a ser obra, não padecerei de correcções inerentes a padrões externos. Nada mais importará. Serei sereia tatuada. Tornada signo de pássaro livre. Oxalá consiga. A minha libertação será essa, quero acreditar que sim, tornar-me eco da minha alma, grito do despudor. Assim, cobrir-me de tatuagens devolver-me-á a mim. Passo a passo.
(Imagens: screenshot frames de performance por Inês Marto)
Antes de mais nada, fica o link para o debate. Ia escrever ontem sobre tudo isto, mas tendo em conta o pano para mangas que muitos argumentos apresentados, que nem a argumentos chegam, às vezes chegando a tocar no ridículo mesmo, me ia dar, adiei.
E depois percebi que talvez não fosse preciso muito mais do que justamente expor passo por passo o que foi dito, para que ficasse de caras a completa falta de lógica apresentada pelos elementos neste caso contra a proposta de lei. Realmente a única argumentação válida e coerente que consegui extrair desse lado foi mesmo o questionar então e os restantes géneros não binários, onde ficam no meio disto, porque não, a fazer uma alteração, permitir a todo o espectro de género.
Sol de pouca dura, no entanto, pois não tardaram a cingir mulheres a características estereotipicamente femininas e homens a masculinas, apontando até um caos social pela permissão da alteração de género, quando a expressão do mesmo não lhe correspondesse de maneira aparentemente óbvia. De resto, foi um incessante bater na mesma tecla, mesmo depois de rectificações. Isso e um desvio do tema para casos particulares e questões mais que rebuscadas.
Sem mais demoras, deixo então que o conteúdo do debate fale por si próprio, até porque a responderem a alhos com bugalhos como aconteceu, fica difícil mesmo comentar seja o que for.
Desde logo o programa abre com o título “mudança de sexo aos 16 anos”, referindo-se à proposta de lei da alteração da idade permitida, de 18 para 16 anos de idade, com acompanhamento parental e sem necessidade de relatório médico, no que concerne à mudança de género apenas em registo civil. O procedimento é referido como alterações sem volta atrás.
Catarina Marcelino ressalva que aquilo que se está a fazer é retirar os factores de saúde de uma questão que é identitária e não patológica. E que a lei não se refere a operações de mudança de sexo, não tendo portanto a ver com saúde, é apenas a mudança de nome e de género em cartão de cidadão e registo civil. Destaca ainda o plano para tornar as escolas mais inclusivas para as crianças trans, formando também os professores para a questão.
Sofia Galvão discorda da proposta de lei. Aponta a transsexualidade e disforia de género como diagnósticos de perturbação da identidade. No entanto, distingue sexo anatómico de género, na elaboração do seu discurso, argumentando até que as mudanças de sexo deviam sair do binarismo vigente.
Sandra Cunha rectifica a questão da criminalização dos pais pelos filhos caso não aceitem a mudança de sexo, esclarecendo tratar-se apenas da actuação do Ministério Público na defesa dos interesses da criança, nos casos necessários. Acrescenta ainda que a autodeterminação é um direito fundamental, não susceptível de validação alheia. E que os jovens têm essa capacidade de autodeterminação, manifestando-se até desde muito cedo nas crianças. E a disforia de género decorre muito da impossibilidade de assumir o género e a descriminação da sociedade perante a situação. “Os médicos não avaliam identidades. Cada pessoa é que o sabe no seu íntimo”, encerra.
Abel Matos, psicólogo, declara que isto é um tema político porque não tem nada a ver com a área científica. Distingue também sexo de género, referindo até a multiplicidade de géneros existentes e o não-binarismo. No entanto, prossegue dizendo que vamos ter pessoas a mudar de género que não são transsexuais porque não vão fazer nada com o seu corpo. Dá dois exemplos, para explicar porque acha a lei ridícula: uma mulher trans que no final do treino num ginásio “vai tomar banho com as senhoras, com o seu pénis masculino”, considerando-o uma opressão. Refere ainda o exemplo de um homem trans que tenha engravidado, tornando-se um “homem grávido”, uma novidade em termos mundiais. E termina esta primeira intervenção referindo a autoridade do conservador do registo civil para avaliar a capacidade psíquica; e ainda diz haver questões de saúde pública postas em causa, devido às cirurgias realizadas aos bebés intersexo passarem a ser apenas realizadas em risco de saúde evidente, e também devido a ficar ao critério do jovem decidir ir ou não ao psicólogo, não podendo ir contra vontade. O psicólogo refere que há doenças psíquicas que podem levar a pessoa a pensar que é de outro género.
Catarina Marcelino quando questionada sobre a maturidade aos 16 anos, refere que a essa idade há muitos jovens que já têm a sua expressão de género e identidade formada, até muitas vezes com apoio dos pais. Portanto devem ter direito a que a sua identificação e forma como são legalmente tratados a reflicta.
Sofia Galvão responde dizendo que um indivíduo com expressão de género feminina, com esta alteração agora se quiser, pode fazer a mudança civil para género masculino e vice-versa (embora tenha anteriormente distinguido género, sexo e expressão de género; e referindo até o não-binarismo); refere que estamos a caminhar para uma sociedade em que na rua alguém tem uma aparência que identificamos como um género, que depois pode ser algo completamente diferente. Volta a proferir “perturbação da identidade de género”. Diz ainda que os conservadores do registo civil vão dizer que sim ou não com base na empatia que tem com os casos, sendo que não tem relatório nenhum.
Daniela Bento, mulher trans, traz contributo ao debate, mostrando as diferenças que existem até em meios mais conservadores, não existindo sequer informação ou linguagem relativa a estas questões de género, havendo também uma opressão muito maior. Introduz também a perspectiva de género enquanto constructo e performance social, e refere também que é segundo a expressão desses quadros referenciais estereotípicos que os médicos validam ou não a legitimação da mudança de género; forçando os indivíduos a performar segundo esses mesmos quadros, por forma a poderem fazer a mudança autorizada pelos médicos.
Abel Matos volta a referir o não acompanhamento dos filhos pelos pais ao psicólogo, sendo que podem ter uma doença de base que necessite de tratamento. Retoma ainda o exemplo da opressão no ginásio.
Ricardo Branco, constitucionalista, afirma que a lei tutela casos de expressão mais física ou mais psicológica, em resposta ao retracto social de Sofia Galvão. Mais, afirma, segundo a constituição e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade: “As pessoas, a partir do momento em que são pessoas, externalizam-se e aparecem à sociedade e aparecem diante de si próprias e diante dos outros, enfim, como quiserem e como se sentem melhor.”. Diz ainda que, segundo a psicologia, sabemos que somos mais software que genética, e às vezes é justamente o software que nos obriga a sermos mulheres em vez de homens, o que acontece frequentemente. Relativamente à questão posta por Abel Matos sobre a opressão no caso do ginásio, afirma que talvez tenhamos que evoluir eventualmente para uma configuração logística dos espaços para balneários de vários géneros, ou mistos. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, acrescenta, traz a despatologização da questão de género, que, considerando-se uma perturbação, até aqui era corrosiva para o indivíduo. Mas quando questionado em relação à parte etária, refere que é na maioridade que neste momento a lei encerra uma capacidade de responsabilidade e maturidade plenas. E, portanto, não será errado baixar para os 16 anos ou eventualmente menos até, mas com um relatório médico, não a atestar validações de género, mas sim a atestar capacidades de querer e entender a superação dos riscos pelos benefícios, desta mudança.
Catarina Marcelino, respondendo sobre as habilitações do conservador do registo civil, afirma que a situação não é nova, e que já existem muito mais casos onde estes têm que avaliar se os processos são legítimos, como no casamento, cuja idade legal é também os 16 anos.
Abel Matos volta ao assunto da imaturidade aos 16 anos, apoiando-se no desenvolvimento incompleto do córtex pré-frontal do cérebro, dizendo que é por isso que a maioridade é aos 18, e que se não se pode votar, nem fumar nem beber, mas pode-se mudar de sexo, não fazendo sentido. Refere ainda uma vez mais as patologias psíquicas, dizendo ser isto portanto um problema de saúde individual e de saúde pública.
Sandra Cunha refere que nada disto invalida o acompanhamento médico e avaliação do indivíduo, voluntário, apenas não é necessário à alteração do registo civil.
Sofia Galvão, assim como Abel Matos, contrapõem a proposta de lei dizendo que é tratada com demasiada ligeireza, pelo acompanhamento médico não ser obrigatório, e por o conservador se encontrar completamente sozinho na decisão, não sendo claras as situações em que pode indeferir o pedido, tratando-se então portanto de uma questão de empatia com o caso. Retoma ainda a ideia da expressão de género poder não vir a bater certo com o género legal, a partir daqui.
Sandra Cunha questiona qual é o problema disso, e refere que a forma como se veste e se apresenta não define aquilo que uma pessoa é. Ao que Sofia Galvão pergunta então porque é que quer mudar. Sandra Cunha retoma com a pergunta, se quiser vestir fato e gravata e usar boxers deixa de ser mulher por causa disso? Ao que Sofia Galvão responde que não. E pergunta então porque é que alguém que se apresente como mulher quer ir ao registo civil para passar a ser homem (a mesma que referiu o não-binarismo primeiramente).
Sofia Cunha pergunta, diz ela para se perceber como isto é político e politicamente correcto e relativismo, se falaram com os conservadores, e com os médicos. Ao que Sandra Cunha e Catarina Marcelino respondem que os médicos recomendam a autodeterminação. E Catatina Marcelino refere que não existe nenhuma objecção a que se levem os filhos ao médico, apenas não se podem fazer alterações e tratamentos modificadores às crianças sem o seu consentimento.
O debate volta ao assunto intersexo, Paolo Casella, cirurgião pediátrico responde que é muito difícil ter que esperar pelo tratamento aos 16 anos, mas refere-se apenas a uma malformação peniana de desenvolvimento específica, preferindo não tocar em questões de disforia de género, que diz não serem da sua especialidade.
Catarina Marcelino corrige que nestes casos o diploma não refere os 16 anos, e que nas questões de risco comprovado para a saúde não se coloca. Apenas em questões que impliquem modificações a nível do corpo e das características sexuais, não devem ser realizados procedimentos até que seja manifestada a identidade de género. Paolo Casella refere que o conceito de saúde é relativo.
Carla Moleiro, professora de Psicologia, questionada acerca dos 16 anos, afirma que a maturidade não tem uma idade definida. Refere ainda que a transexualidade define apenas a incongruência entre o sexo designado à nascença e o género com que a pessoa se identifica, não necessitando, nem até agora, de ter executado nenhum procedimento cirúrgico, hormonal ou outro para ser reconhecida essa identidade, medicamente no relatório avaliativo.
Abel Matos responde então que, se ao que Carla Moleiro referiu, esta lei já abrange esses casos, o que se está a fazer aqui é uma questão ideológica. E que temos que salvaguardar aqueles que não tendo um transtono de identidade de género per si, mas por terem uma patologia de base, possam ser defendidos pelo sistema de saúde. Expõe um caso de um homem de 65 anos “casado e com filhos”, que chegou ao seu consultório dizendo que era uma mulher. Estranhando que acontecesse a essa idade, encaminhou para a neurologia, onde detectou um tumor cerebral. “Foi operado e essa ideia passou-lhe”.
Margarida Faria, Presidente da AMPLOS, aponta a caricatura e jornal do incrível, que aqui se está a fazer. Aponta para a fluidez do espectro de género, e que há pessoas com a noção desde sempre da sua identidade de género. Os pais, após a angústia, costumam entender e apoiar a criança, fazendo com que consigam desenvolver-se nessa identidade. Encerra dizendo que ninguém vai mudar de sexo nos registos, vão-se alterar os registos para que passem a confirmar aquilo que muitas vezes já se sabe desde tão cedo.
Sofia Galvão acrescenta que estes diplomas confundem sistematicamente sexo e género (a mesma que descredibilizou o género pela forma como se veste e tem o cabelo) e que o sistema é binário nos diplomas, descurando outras realidades, que não se resolvem. (idem ao parêntesis).
Catarina Marcelino defende que só se fizeram mudanças em relação ao que já existia, eliminando o factor saúde destas questões de identidade. Ricardo Branco defende que talvez devesse haver uma fundamentação do requerimento no plano jurídico, dizer porquê, embora não conceba que alguém utilize esta lei para questões fúteis de apenas mudança de nome porque sim. Referindo ainda que não se pode endeusar a posição dos pais.
E o tempo do programa chega aqui ao fim. Acho que a capacidade de argumentação mostra a lógica da opinião no espelho da coerência dos argumentos...