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INÊS MARTO

INÊS MARTO

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Os processos emocionais no contexto performático

 

A dissecação dos ciclosemocionais de raiva, ansiedade e subsequente aceitação pessoal, a partir de Giovanni Frazzetto, aplicada à construção da performance (Unbreak)able.

 
(Unbreak)able - draft
A performance (Unbreak)able teve como mote e como ímpeto criativo desde sempre abase cíclica e circular em que me afundo e afloro. Em que convirjo comigo,colido comigo, mergulho em mim e depois me elevo.
Esses círculos, esses ciclos, sãotanto a base da minha autoconsciência como, por consequência directa, da minhaarte que é objecto disso mesmo. E reflexo disso mesmo.
No caso específico da performanceescolhida como termo de análise dos processos emocionais subjacentes à criação– (Unbreak)able – as causas dessesmesmos ciclos e aquilo que em mim os aviva foram desde logo questões que tiveque explorar, chegando a motivos concretos, que pautam todo o percursoemocional.
Assim, escolhi assentar a minhaautoexploração nesses gatilhos emocionais concretos, por uma questão deexistência de um caminho delineado, com uma mensagem artística a passar, queconsiderei essencial à realização do trabalho performático.
Tratam-se de variantes diversas. Mastodas convergentes num denominador comum: a forma de me olhar a mim própria eas consequências disso. Mais pormenorizadamente, aquilo que nisso implicamquestões como a minha diversidade funcional – a chamada deficiência – e como meleva a perspectivas diferentes sobre o meu corpo e a forma como com ele merelaciono; a minha expressão de género, que é também factor determinante desseprocesso e até mesmo a minha sexualidade, onde tudo isto se reflectedirectamente.
Todos estes factores corroboram umquadro geral de como sinto e penso quando me olho ao espelho, ou quando metorno consciente de mim, quadro esse que tentei transpor para o trabalhoartístico variadas vezes, entre elas a performance (Unbreak)able.
Esse é o tal quadro que digoacontecer de forma cíclica ou circular. Esse é o tal quadro que em mim traz aarte quer enquanto escape quer enquanto espelho.
Procuro aqui, na análise de How we feel, de Giovanni Frazzetto,explorá-lo nos seus prismas psico-emocionais e biológicos para uma aproximaçãomais científica, para assim conseguir dissecar e deixar explícito de melhorforma esse que é o complexo mecanismo que acaba por me pautar em tanto do quesou.
Inicio a análise por onde a iniciatambém Frazzetto, no seu primeiro capítulo, “Anger: hot eruptions”.
Frazzetto começa logo por tocar numponto realmente interessante: “Anger is also fear with an armour. It works as a defensive, pre-emptive reaction beforesomething hurtful can be done to us.”1
Essa afirmação da raiva ser tambémmedo com uma armadura leva-me a considerar, primeiro que tudo, a raiz dafrustração e raiva que expressei como parte primeira da performance.
A reacção de revolta para com o meucorpo físico assenta essencialmente no medo da fragilidade que lhe é inerente.O medo dos obstáculos que isso me pode trazer de futuro, como até aqui tantasvezes trouxe.
O medo que é consequência justificadade o mundo não estar preparado para os nossos corpos não-normativos, para anossa diversidade funcional. E o desamparo que isso nos traz, o nunca saber porcerto como é o amanhã, se não tivermos ninguém. O ninguém ser garantido, nempara nós nem para os outros. E neste caso, a sobrevivência não ser,consequentemente, garantida, também.
E a frustração que isso nos traz, pornos lembrarmos a cada movimento consciente do fio de dependência física que lápermanece. E de, no fundo, nem sabermos como vamos ser, quem vamos ser nósamanhã, e em que padrão físico nos vamos reger. Já que, para nós, nem nósmesmos trazemos manual de instruções que nos valha.
Se um dia corre suavemente, talvezconsigamos cozinhar o almoço e lavar a loiça – é como quem diz escalar umamontanha, e talvez no fim nos sintamos válidos. Mas se, por outro lado, um diacomeça menos bem, desde logo sair da cama se torna uma missão impossível. Desdelogo o corpo não reage, desde logo a força não chega, desde logo tudo cai aochão e muitas vezes a nossa força também.
E desde logo não resta outra hipótesesenão colocar essa armadura que a raiva impõe ao medo. Aproveitar a explosão derevolta, do porque é que nos acontece a nós se não temos culpa de nada, edeixar que nos comande a força.
E, bem ou mal, sair da cama, mesmosem que nesse dia o corpo nos permita força para mais do que nos fazer refénsda cadeira-de-rodas, a mesma que nos outros dias é um par de asas.
E ainda assim, de pijama, descalços ea contentar-nos com o pacote de bolachas que conseguimos alcançar, fechar aporta do quarto que deixamos para trás das costas e seguir vida. Mesmo que nasnossas quatro paredes. Mesmo que a não ter outra coisa por ímpeto nesses diasque não fazer da nossa própria dor uma porta, escrever sobre ela, pensar sobreela, mergulhar nela e dissecá-la.
Talvez então chegar à arte. Talvezentão chegar a outras asas. Talvez um artigo, talvez uma performance, talvez umpoema. Seja como for, uma semente, seja como for, qualquer coisa para que ocustoso sair da cama não tenha sido em vão.
No caso, a raiva e a ansiedade estãointimamente ligados. A raiva é consequência dessa ansiedade, desses medos. É aexplosão dela que faz tantas vezes com que não nos reste outra coisa senãocontinuar em frente.
A ansiedade, contudo, parece-me serum processo menos linear, e sem a compensação de trazer consigo a força. Aansiedade é muitas vezes paralisante. E é também muitas vezes causada pelaraiva.
O caminho é bilateral. Se por um ladoleva a ela, por outro lado o atirar ao abismo em que a raiva nos coloca, podemuitas vezes trazer novas situações de desamparo em que a ansiedade escala,levando-nos ao poço de dúvidas que nos assola.
DizFrazzetto, no capítulo terceiro, que dedica à ansiedade: “If examined carefully,some of those worries sound ridiculous, or unnecessary to say the least, don’tthey? Yet, alone in the darkness of my bedroom, I didn’t seem to have muchcontrol over them.”2.
“I began to worry about themeaning of all I had done, whether or not I had taken the right decisions inlife . It was one of those moments when I thought I needed to do everything atonce, as if the world were about to end and I only had a few hours left toaccomplish all I had ever wanted to do.”3.
Mas a ansiedade também, no contextoda segunda parte da performance, mais raízes que não estão apenas ligadas àideia longínqua de um corpo funcional.
Prende-se muito também com o corponão-normativo na expressão de género, a fluidez de género, o não binarismo, omedo da exclusão social que, além do resto, isso também me traga, que me leve àsolidão – solidão essa que se torna mais assustadora ainda se considerarmostoda a explicação anterior – o medo da minha dimensão enquanto ser sexual nãoser reconhecida, o medo do desconhecido dos outros face a mim nesse contexto eque isso os afaste, como muitas vezes me chega a afastar a mim, por disforia epor revolta da distância face aos ideais.
“Fear has a specific target.What about anxiety? Well, anxiety is not as simple. Anxiety is usually a fearof the indefinite, something that we cannot always explain or even locate inspace and time. It is unpredictable, and often the anticipation of an unknownor not necessarily incumbent threat.”4.
No fim de contas, uma espiralexacerbada de preocupações sobre a desadequação, o isolamento e os sonhosgrandes demais para a realidade, que acaba por se tornar subcutânea e muitasvezes indefinida.
Mas é o afundar-me em tudo isso queme leva à terceira e última parte da performance. A aceitação, a resignação, oconformismo – embora nunca total porque já o sei cíclico, porque já me seicíclica a mim, e porque já me sei sonhadora sine qua non – é esse precipícioque me adensa e me torna maior, porque é também esse precipício que me permiteas ferramentas de fuga e de escape que me dão propósito, que me fazem valer osdias em que todo o resto me falha.
Nesse aspecto, pode até dizer-se sermeta-performance: (Unbreak)able foiem si mesmo um ponto de fuga, uma ponte para a aceitação induzida, enquantosimultaneamente acaba por versar sobre esse mesmo conteúdo, na sua parte final.
Em última análise, apraz-sepertinente expor conclusivamente o texto que escrevi enquanto enquadramentoteórico de defesa académica da performance, que creio encapsular da minhaprópria perspectiva este padrão sobre o qual nos debruçamos:
(Unbreak)able
 
“Quis despir-me. Na verdade, queriapoder despir mais que o corpo. Depois das roupas queria tirar a pele. Depois dapele queria arrancar a carne. Depois da carne desfazer os ossos entre os dedose os dentes. E desse nada que restasse, ver nos meus despojos até onde sedemarca a minha diferença. Isto sou eu. Não sei o que isso quer dizer. Não seia forma certa de me olhares, não há forma certa de me olhares, não há formacerta de coisa nenhuma, era por isso que não sabia como fazer nada disto.Partiria tudo do pressuposto do que vês quando me olhas. E a verdade absolutade mim, nem eu a tenho.
Uma pessoa, por acaso numa cadeira,ou uma cadeira com uma pessoa? Isto sou eu. Há 22 anos que ansiava pela minhaprópria libertação. Descobri a arte como espectro das minhas prisões. Oalimentar e o alimento circular dos meus fantasmas. Tempos a fio procurei umgrito de fénix. Mais tarde percebi ser cíclica. Caminhar lado a lado com amorte, respirar cara a cara com o frágil, transpirar pele a pele com o vácuo, éisso que me renova, é isso que me mantém. Será um dos meus poucos vícios,injectar sal nas feridas.
Quis mostrar esse tanto mais. Para láde posto em causa o diferente e o igual, o que fica por ver. Não sabia como. Omeu corpo, por si só, grita teses demasiado alto para que o resto sobressaia.
Então, quis ir mais longe ainda: fizda nudez ferramenta, das cicatrizes néones para um olhar aberto, dasdeformidades um púlpito por onde te trago a olhar-me desde mim. E despojei ocaminho expectável do resultado artístico. Ao que em mim há de poeta, retirei apoesia. Deito-me por terra, o nu do corpo espelha apenas a erupção que há-devir. Faço da sujeição à minha própria infimidade desmascarada, despudorada deartifícios, o veículo para a minha própria libertação.
Era isso que me faltava – não erampoemas, não era a demonstração óbvia do físico per si, não era o simbolismoartístico de uma identidade fluida de género, ou o fio da navalha da morte –isso é o que já sou todos os dias. Faltava-me a crueza de me deixar aoprecipício de mim, puxar da raiz de todos os traumas e deixar que a realidadetomasse o seu curso de explosão. Por uma (e de uma) vez, sem estéticas, ser-meveículo e permitir-me a chorar todas as lágrimas. Incorro no risco do sufocantedemasiado, ciente disso como na vida, acompanhar-me-ão os que souberem ficar,do maior resto não rezará a minha história. Hoje enfrento os meus fantasmas,cultivá-los-ei alimentados da minha pele, suor, lágrimas, e tudo o mais queeste deliberado incurso no precipício proporcionar, para que jamais me deixem.É deles que voo. A minha vidaé isso – vertigem.”

Dissertação produzida como proposta de avaliação à Unidade Curricular de Sociologia das Artes do Espectáculo, da Licenciatura de Estudos Artísticos - Artes do Espectáculo, docente Anabela Mendes, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018.

 

O corpo inerte e o pensamento filosófico

Como a realidade da quietude forçada me leva a um mundo maior e incuba tendencialmente a filosofia e a arte em mim, por me alastrar naquilo onde consigo: o caminho mental.

 
 
 
Assim que acordo, dia-após-dia, a noção da divergência dos meus padrões de movimento face aos de mobilidade normativa está presente. É uma presença quase latente, por existir desde que eu própria existo, mas nem por isso deixa de estar lá. 
Afigura-se quase como a consciência da nossa própria respiração – ela acontece, por si mesma, automática, só se torna manual se induzirmos a autoconsciência sobre o processo. Do mesmo modo, a pronunciação da minha própria noção de padrões de movimento diferentes está cá, apenas se encontra numa espécie de ciclo automático. 
Seria assim. E é, em parte. É assim a minha autoconsciência de padrões físicos, pelo menos enquanto o meio envolvente me permite situações de conforto e não esforço, aí facilmente me esqueço de mim. 
Por exemplo, de momento, estando sentada na cadeira-de-rodas, a redigir este mesmo texto, não me lembraria que estou como estou, caso não tivesse que me despertar sobre isso para o escrever. 
 
No entanto, não obstante o hábito em relação a grande parte do que decorre no dia-a-dia, que atenua mais essa consciência, ou pelo menos a normaliza; basta-me precisar de ir buscar um copo de água ou abrir a porta, para o meu circuito de pensamento já ser completamente diferente. 
Desde logo tenho que pensar como o vou fazer. Como conduzo a cadeira, para dar espaço de abrir a porta, como transporto o copo enquanto volto para a secretária para não entornar a água. Como acordo e saio da cama e me visto e me calço, se conseguir, nem sempre consigo, e como vivo. 
Então, desde logo, uma boa parte do meu movimento está associada necessariamente a pensamento lógico, planeamento estratégico e geralmente esforço. O que faz com que sejam as situações mais inertes aquelas que me colocam menos alerta, e, por conseguinte, mais confortável e mais tendencialmente inclinada ao pensamento livre e filosófico. 
 
Contudo, estamos ainda a tocar apenas numa parte muito superficial da minha noção corporal. Regra geral, tudo isto que descrevi se processa sem que eu própria tenha que pensar muito sobre isso – ou há mecanismos e técnicas já aprendidas ao longo dos anos, que enraizei, ou, para o que não faço sozinha, felizmente na maioria dos casos ou encontro soluções ou consigo conformar-me a alternativas. 
No entanto, há particularidades acerca da paralisia cerebral, diplegia espástica, que tornam muitas vezes difícil esquecer-me do meu próprio corpo, e manter toda a noção de mim mesma latente. Principalmente a espasticidade, como o próprio nome indica. Que consiste nas permanentes sinapses cerebrais para contracção involuntária dos músculos. 
 
Isto é, na prática, a paralisia cerebral além das limitantes no que respeita ao movimento em si, torna-me também um corpo permanentemente tenso, o que faz com que me sinta mais. Sobretudo com estímulos, a grande probabilidade é que me contraia, mesmo sem querer. No meu caso específico, resulta num padrão de corpo esticado, maioria das vezes, e voz tolhida, de respiração mais curta. 
Já tenho isso como normalizado, tanto é que perco a noção que o faço e, muitas vezes, se me vir por exemplo em gravações de vídeo espontâneas, não tenho noção de determinadas posturas ou expressões. Mas, no momento em que decorrem, mesmo que as tenha enraizadas como naturais por força de hábito, a verdade é que, pela contracção, me trazem a mim e me lembram de mim. 
 
Tudo isto me leva a sentir mais conforto em dois polos opostos – ou naquilo que me foque necessariamente no meu corpo, e talvez assim extravase o overload que sinto subliminarmente todos os dias (como é o caso por exemplo de nadar, onde sinto o corpo com mais liberdade, ou do processo de ser tatuada, em que a dor me chama permanentemente a mim e me faz “habitar” o momento, escolhendo algo que me dói porque eu quero que doa, e marcando o meu corpo porque eu o quero marcado, permitindo-me assim algum domínio sobre ele). 
Ou então, o extremo contrário disso, aquilo que me permita o mais possível a alienação e o esquecimento momentâneo. Situações como escrever, ver filmes, ver peças de teatro, ouvir música, enfim, tudo aquilo que me transporte para fora de mim, funcionam como um bálsamo, porque me permitem habitar a esfera onde sou mais livre do que a do físico: a da mente. 
 
E talvez agora esteja a chegar ao cerne da questão que aqui pretendo provar. Maioritariamente, procuro formas quietas de estar, porque me permitem adensar-me mais. 
Ciclicamente, então, é nessas áreas que mais me desenvolvo. No explorar da escrita, das artes cénicas, no observar, no estudar, no descobrir e aprofundar padrões daquilo que me rodeia, na curiosidade em entender e sentir o mundo e como ele em mim se recria e reverbera. 
Não só, portanto, o desenvolvimento autodidata que faço dessas vertentes me permite ocupar o meu tempo da forma como me sinto mais eu – sem aparentes, ou pelo menos activamente notórias, limitantes – e portanto me leva a escolhas de vida que preferencialmente passem por isso, como, circularmente, por escolher repetidamente esses caminhos para o meu tempo, me aprofundo mais no conhecimento, na sensibilidade e na abertura para eles, e vou descobrindo também outros e novos temas paralelos, tornando-se um mundo cada vez maior aquele que descubro, lendo, investigando, observando e filosofando. 
 
Um factor interessante de notar aqui também, são as cumulativas vezes em que quem me conhece virtualmente e pela escrita sente dificuldade em acreditar na minha idade cronológica. Creio também prender-se a resposta a essa questão exactamente à quietude física versus a longinquidade onde chego no pensar. 
Fisicamente, a realidade é que não vivi muito, pelo menos não tanto, nem metade sequer, do que uma cabeça sonhadora como a minha gostaria de viver. Em sensação física das experiências tenho um quotidiano, digamos, pouco temperado, para quem na verdade gostaria de perder amarras. Facilmente sou tida, por isso, como insossa ou banal à primeira vista, o que a minha natureza introvertida ajuda, mais o estereótipo que já traz por si só o “elefante na sala” que é uma cadeira-de-rodas, quer eu queira, quer não. 
 
Mas, mentalmente, não é isso que acontece. Na escrita também não é isso que acontece. Quem cria o primeiro impacto desse modo, tem de mim uma representação muito mais fiel daquilo que sinto que sou. Tanto é que coleciono um considerável rol de reacções de espanto, quando me encontro com quem chegou a mim assim e me desconhecia. Tenho na escrita o ponto de fuga. Tenho na escrita, e no pensar artístico, criativo e filosófico que lhe está associado, a minha forma de ser do tamanho que realmente sou e ainda me suplantar. 
Tenho na escrita, e na quietude dela, e em quase todas as janelas mentais que abro a descobrir mais mundo, que acabam por nela desaguar, o meu modo de chegar mais longe. O forçar-me ao corpo destitui-me desse meu propósito. É no despojar-me dele que indubitavelmente me sinto mais, e que produzo aquilo a que quem me conhece chama carinhosamente de “espasmos poéticos”, que realmente sinto irem ao encontro da minha essência e que a elevam. 
 
Creio que se fosse livre em corpo como sou em espírito, talvez não tivesse todo este mundo dentro, pelo menos não ainda. A idade não me corresponde. O tempo mental de quem se “auto-navega” é rápido demais para os relógios. Não será também ao acaso que quem me lê me chama até de “old soul”. O tempo da descoberta não espera pelos ponteiros. 
Mas acredito que se pudesse não ser presa pelas minhas limitantes – e especialmente já tendo estado deste lado e tendo noção do que perco – muita coisa não seria como é. 
Não seria assim, porque teria (e tenho, com teimosia continuo a ter) uma imensa vontade de viver o que não posso, de chegar onde não chego, de ir onde não vou, e sobretudo intensamente, e sobretudo longe, e sobretudo de modo tão frenético e assoberbado, que não me restaria tempo para pensar, nem para me adensar, nem para saber quem era, só para me sentir de uma vez e apenas – só para compensar tudo aquilo que me falta – só para o reverso da medalha, perdendo os limites de vista. 
E aí, não acredito que filosofasse, que me preocupasse em ler e investigar, que quisesse perder tempo quieta a escrever, se podia dançar de pé, se podia ser dona de todos os meus passos, se podia permanecer no fio da navalha e dar-me ao luxo de escolher brincar com a sobrevivência. 
 
Seria hipocrisia minha, se não admitisse que são muitos os dias em que trocava uma coisa por outra, caso tivesse escolha. Mas na realidade não sei até que ponto me sentiria completa. Não sei até que ponto sentiria propósito. Não quando tanto do que sou se assenta no que escrevo. E aí, chego até a agradecer, pela quietude que me é forçada, porque a afirmação mais franca que posso fazer é que não sei quem seria se não filosofasse, se não habitasse os mares que construo dentro, se não fizesse tudo o que aqui descrevi, que me abandona do eu físico para me espraiar onde ele é livre, e que tem no seu pináculo sempre a escrita. 
 
Concluo que as limitações que tenho enquanto corpo móvel, hábil, funcional, não só me tornam quem sou por não me deixarem outra escolha, como por me fazerem aguçar ao máximo todos os outros potenciais que não lhes estejam inerentes, numa espécie de acto de plasticidade cerebral aplicada à própria construção do self, em que faço uso do espaço que seria do corpo, para me aumentar no que me resta. 
Aliás, a própria experiência de redacção deste trabalho acaba por ser reflexo de tudo aquilo que tento defender: na inércia física em que redigi tudo isto, tacteei-me e percorri em mim distâncias enormes, potenciei um expoente maior da minha auto-descoberta e permiti que acontecesse aquilo que é por definição o meu meio de me expandir. 
 
Conclui-se circularmente, por tudo o que acabo de escrever, processo que é em si espelho do que ilustro, o que creio ser o ponto final ideal da minha reflexão livre, a metafísica do título: o corpo inerte no pensamento filosófico.

 

Dissertação produzida como proposta de avaliação à Unidade Curricular de Teoria e Estética do Teatro, da Licenciatura de Estudos Artísticos - Artes do Espectáculo, docente Anabela Mendes, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018.

O simbolismo da cor na dança | reflexão artística

Texto elaborado como resposta à avaliação escrita da unidade curricular de Teoria e Estética do Teatro, leccionada pela Professora Anabela Mendes, da Licenciatura em Artes do Espectáculo, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a 1 de Junho de 2018, sob premissa da reflexão do significado da cor enquanto elemento simbólico na arte, e, mais especificamente, na dança:

 
 
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Dimitris Papaioannou - Primal Matter
A questão da cor é desde sempre vasta. Prova-se ser algo profundamente enraizado histórico-socio-culturalmente. Quer no seu simbolismo, quer no efeito que em nós provoca. Do luto às celebrações, do culto religioso às atribuições de género e das ideologias políticas até aos poderes xamânicos.
Subliminarmente, e sem que na maioria das vezes estejamos cientes disso, a influência da cor denota-se um pouco por todo o lado.
Elogio frequentemente a negritude de certos timbres e improvisos vocais. Conotou-se um estilo à raça que lhe deu origem. Conotou-se uma raça à cor da pele dos que a compõem. Mas estará a negritude de alguém pendente da melanina? Pendente do berço? Pendente do meio envolvente? Quem diz negritude diz qualquer outra sensação de casa. Provirá do pó astral que nos compõe? Da memória ancestral? A sensação de pertença, o lugar no universo...
Conheço "evidentemente brancos" de alma negra. E aí? Tornar-se-á a cor um espectro referencial de encaixe da essência também? A abordagem ao tema poderia ser tanto mais múltipla e profunda quanto mais me debruce sobre ele.
 
 

Mas, por abreviação analítica, escolho centrar-me em Primal Matter de Dimitris Papaioannou. O corpo e o nada. O eu e a ausência. A incompletude do ser. A pele e o vácuo. A cor da pele e o vazio. O negro como o vazio. A vermelhidão do corpo contraído em esforço. O que fica, com tudo isto, presente na memória, são reflexões sobre o eu e o seu caminho. O eu e as suas batalhas. O eu e a sua pequenez que se agiganta na busca de sentido. O eu e o outro. O eu e a sede de encaixe. E a esperança de voo.
Também a bravura da conquista. Também a loucura do sonho. Também o intangível como ímpeto. É tudo isto feito a cor de pele e negro, a luz e sombra, a suor e madeira e a transparências de água.
A presença da cor será talvez uma gravura volátil na parede da memória. A dança é pintura em movimento.
Terá a cor do corpo hábil o sabor que lhe imagino? Como será a sensação de dominar o movimento de nós mesmos? Tudo isto me fascina.
Quem sabe eu, evidentemente disfuncional, pinte da minha própria paleta de corpo frágil, espástico, indomado, também novas cores com que fazer dança: a cor das cicatrizes sobre o metal das rodas. E talvez assim atinja a minha liberdade, na demanda de saber de que cores se pinta a força.
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Dimitris Papaioannou - Primal Matter

O subtexto corporal e a empatia na arte | Reflexão artística

 
 
Paula Sá em Os Homens da Minha Vida, 2014. Fotografia: Ricardo Rodrigues
A expressividade física, enquanto linguagem corporal e facial, é uma valência aplicada a todos os seres vivos. Primeiramente enquanto mecanismo necessário à sobrevivência, mas também como parte chave de padrões comportamentais e sociológicos. De certo modo, podemos dizer que até as plantas exercem expressividade física, na medida em que são seres vivos que reagem a estímulos como o de luz/sombra, por exemplo, contorcendo os "corpos" de modo a favorecer as questões mais adequadas à sua sobrevivência.
Se aplicarmos esta questão à dimensão artística, ao tomarmos os primórdios da arte na civilização humana em consideração, podemos observar a multiplicidade da utilização do corpo enquanto "veículo" e, simultaneamente, modificador activo do resultado da obra artística, nos mais diversos contextos. Desde o surgimento da música, à dança e ao teatro, como vemos n' O Nascimento da Tragédia de Nietzsche, que o corpo tem um papel fundamental na arte. Se formos mais além, e em contexto contemporâneo de performance, é até tido como matéria.
Mas tomemos, por uma questão de não dispersão do raciocínio, agora um caso específico para análise, através do qual possa ilustrar as relações emocionais incitadas pela expressão física do artista, na minha posição de espectador.
Escolho para isso uma situação talvez menos exacerbada, mas ainda assim não menos intensa e comprovativa. Tomo como exemplo prático o espectáculo Os Homens da Minha Vida, um concerto de registo intimista onde a cantora Paula Sá revisita a sua vida através de música cantada ao piano.
Talvez pareça pouco óbvio o meu percurso mental da questão, mas é isso mesmo que proponho: dissecar as emoções no processo simbiótico artista-espectador e qual o papel da linguagem corporal no processo.
Assisti à gravação em vídeo do espectáculo múltiplas vezes ao longo do último ano. A parte vocal é obviamente a de maior destaque, mas está longe de ser a única. Há na linguagem corporal da artista um subtexto, arriscar-me-ia a dizer tão forte como a expressão vocal. A voz promove empatia, pela execução exímia e o convite de difícil recusa ao foco no presente por parte do espectador. Mas é a utilização do corpo que adensa essa ligação da artista com quem a vê, ainda mais longe.
Do mesmo modo que os exemplos enunciados [na pergunta, sobre a expressão corporal de Kathakali], são as mãos e o olhar que mais prendem também. Ilustra o canto com o gesticular. E tem a emoção do que canta à tona da voz e dos olhos. Escrevi uma vez que parece trazer nos dedos gaivotas envidraçadas.
Conecta-se a mim num contexto cinematográfico, pela expressão facial fortíssima, a fragilidade e a comoção denotadas no rosto enquanto canta, e as mãos trémulas a ondular as notas vocais, tornando-se quase dança. Impele-me à poesia por indução empática.
Talvez seja esse o expoente máximo da dimensão desse efeito das emoções em quem as observa: tomar de tal maneira conta do espectador que ele mesmo se inunda da mensagem do artista. E da maneira como anda, como se senta, como coreografa de forma instintiva a dança de ser e estar, enquanto se descreve e canta, surgem degraus através dos quais chego a ela, me comovo e quase a bebo liquefeita e escrevo inúmeros versos sobre a sua corporalidade.
Uma das melhores partes da arte, julgo, está aí mesmo, no nós espectadores esquecermos a nossa pele e nos deixarmos invadir por todos os subtextos do artista.
É interessante também referir que, das diversas vezes que assisti, os meus diferentes estados-espírito me fizeram sentir maior ligação com diferentes partes do espectáculo. De grosso modo, as que fossem mais de encontro ao que eu mesma sentia.
É uma particularidade interessante do processo empático, o facto de como, por exemplo estando tristes, uma música triste nos pode surgir como bálsamo. Diversas vezes o choro dela chegou a aliviar o meu, passei a procurar esse espectáculo como abrigo.
 
(Texto produzido como resposta à avaliação escrita da unidade curricular Sociologia das Artes do Espectáculo, da Licenciatura em Estudos Artísticos - Artes do Espectáculo, proposto pela Professora Anabela Miguens Mendes, a 23 de Março de 2018, visando a expressão física das emoções nos processos artísticos e a empatia do espectador)

Hawking e a quântica de ser maior | Opinião

 
 
 
Stephen Hawking deixou hoje o mundo mais rico. Como já é apanágio da sociedade, pelo menos hoje todos dizem "RIP <3" , todos são amantes de Física, todos partilham as suas frases mais inspiradas, todos se apressam a encontrar os mais comoventes vídeos de tributo. Hoje Hawking chega à boca do mundo pela massificação que traz sempre a morte de um herói. Mais que não seja, por aí, o mundo fica mais rico, triste é que seja tantas vezes preciso morrer-se.
Não, não estou esquecida de "A Teoria de Tudo" nem da brilhante interpretação de Eddie Redmayne, que de repente também levantou essa onda de massas, e ainda bem. Não, também não sou uma hipster, a vir para aqui dizer que já gostava dele antes disto tudo, que sempre me apaixonaram as suas complexas descobertas, a sua revolução científica. Por acaso foi mesmo mais depois do filme até, que o comecei a descobrir melhor, portanto ainda bem mesmo.
Ao contrário do que tudo em mim possa indicar, vim de Ciências e Tecnologias, não vim de Línguas e Humanidades. A minha conturbada relação com a Matemática faz com que eu e a Física, pelo menos a lectiva, a dependente de equações e fórmulas, nunca nos tenhamos dado bem sequer. Gosto sim da parte lógica (diga-se lógica não matemática) da Ciência, da observação, do empirismo, etc. Não vamos entrar por aí hoje. Isto para dizer que buracos negros ou energia cósmica não me são temas indiferentes, gosto de ler e aprender, mais até de filosofar sobre isso. Mas é mesmo só isso, um campo de interesse.
Não foi por aí que Hawking me cativou. Foi mesmo por ser quântico na sua existência. Foi mesmo por não se limitar às condicionantes que lhe impunha a Esclerose Lateral Amiotrófica. Foi mesmo por ser um dos reflexos mais evidentes de como se pode ser tanto mais do que as primeiras impressões denunciam. Foi mesmo pela enorme chapada de luva branca que deu permanentemente ao mundo com o seu humor acutilante. Foi mesmo pelo não se conformar, pelo acelerar na sua cadeira e não deixar de brincar, não deixar de se aventurar. Foi mesmo pelo ser brilhante, cientificamente e humanamente, tanto, e de forma tão marcada, que não havia como não olhar e ver além da limitação mais óbvia, porque simplesmente vivia e pronto. E nesse viver e pronto, a sua dimensão extravazava quaisquer limites de uma cadeira-de-rodas.
É isso que Hawking me faz ambicionar. O quântico, o de tal forma gigante que se torna intangível pela verdade universal, o espelho disso na vida e o espelho disso na arte. Das rodas metálicas com que nos movemos fazer reflexos e púlpitos para que a dimensão do que somos venha a falar mais alto, e que para isso nunca deixemos de querer ser mais. Hawking é a quântica de ser cada dia maior.

Fibromialgia: Rita Ribeiro e a nova perspectivação do corpo | Opinião

 
A actriz Rita Ribeiro esteve esta manhã presente no programa Você na TV, na TVI, onde conversou com a apresentadora, Cristina Ferreira. Há dois anos atrás, Rita Ribeiro foi diagnosticada com fibromialgia, facto que revela agora pela primeira vez.
A minha experiência no que concerne ao meu relacionamento e perspectivação com o próprio corpo, nas suas limitantes mais óbvias, prende-se com a paralisia cerebral, nada tem a ver com fibromialgia. Portanto não é sobre as doenças em si que pretendo opinar. É, antes, sobre o discurso de Rita Ribeiro e as reacções maioritariamente adversas que recebeu.
Desde logo, a revelação do diagnóstico surge como uma surpresa generalizada, sobretudo por Rita Ribeiro se ter mantido sempre no activo e a dinamizar permanentemente novos projectos, ao longo dos dois anos em que já lida com a doença. A própria diz que a sua presença no programa tem o intuito de servir como voto de esperança para as pessoas.
A indignação de grande parte do público demonstrou-se em pessoas que sofrem de fibromialgia e se sentiram mal representadas, chegando mesmo a acusar a actriz de ter dado um testemunho pouco verdadeiro, pouco fiel, ou a indignarem-se pela promoção do trabalho artístico, ou pelo acesso a tratamentos dispendiosos, ou pela "leveza" com que a mesma relatou a situação.
Postas as cartas em cima da mesa, volto a dizer, crédito para falar de fibromialgia tenho zero. Agora tenho, isso sim, enquanto pessoa com paralisia cerebral com 22 anos, uma visão já algo solidificada sobre a representação nos media daquilo que são doenças crónicas, afectantes da parte neuromuscular, que nos levam forçosamente a ter que perspectivar de alguma forma o próprio corpo, todos os dias, por sermos constantemente lembrados da sua existência na dificuldade de movimentos ou na dor.
E, como tal, parece-me absurda a grande maioria dos comentários e a maioria das acusações, muito sinceramente. Ora, se é ponto assente que a doença se caracteriza pela multiplicidade de graus, logo aí não faz sentido o backlash com que a acusam de um testemunho pouco verdadeiro.
O mesmo acontece em relação à paralisia. Não existe tal coisa como uma representação pouco legítima de uma doença que é tão múltipla. Existem sim representações mais ou menos estereotipadas, mas, sendo que cada caso é um caso, será sempre mal representado para alguma parte dos visados, inevitavelmente. Sim, também me chateia que muitas vezes a imagem da paralisia cerebral se prenda com pessoas com a mobilidade de tal forma reduzida que não seguram a própria cabeça, têm movimentos involuntários, babam-se, etc.
Mas a realidade é que existem. E o problema não está em que eles estejam a dar a cara, está sim em que o restante espectro não seja abordado. Está sim em que não se dê visibilidade ao facto de nem todos serem assim. Está sim na falta de conhecimento generalizado da população. E isso não se combate insultando as pessoas que dão a cara, nem pondo em questão a legitimidade disso. Isso só se consegue combater mostrando que também existem mais, não obstante desses - mais graves ou menos graves - que foram representados no momento. Toda e qualquer representação de uma doença que se manifesta em pluralidades contribui para a noção da existência dessas mesmas pluralidades. E a comunidade deveria, penso eu, apoiar, e partir daí para informar do resto. Em deitar abaixo não há ganho absolutamente nenhum.
Mas não acaba aqui. Não é preciso conhecer Rita Ribeiro muito a fundo para se perceber que é alguém espiritual e emocionalmente muito apurada, sensível e inteligente, basta que a ouçamos. Como tal, abordou as consequências do plano emocional no plano físico. Não é, infelizmente, uma equação óbvia para a grande maioria, e talvez um dos grandes problemas da humanidade esteja aí. Levaram o discurso como se desvalorizasse a questão e não retratasse a realidade como o problema sério de que se trata. Os títulos sensacionalistas só desajudaram e só levaram a que muita gente, pelo que se lê nos comentários, saltasse para conclusões precipitadas.
Rita Ribeiro disse ter sido uma bênção ter sido diagnosticada com fibromialgia, verdade. O que a grande maioria se está a esquecer de abordar é o contexto em que o disse, e que explicou imediatamente a seguir. E que, como pessoa com paralisia cerebral, tenho que concordar. Disse-o no sentido em que teve que passar a ter muito mais atenção a si mesma e ao seu corpo. E esta realidade é um facto, como dizia acima. Quem sofre deste tipo de situações neuromusculares, e aqui tenho o meu conhecimento de causa, jamais se consegue esquecer do próprio corpo. É forçado a perspectivar-se. É forçado a encarar-se todos os dias.
A grande diferença é que Rita Ribeiro escolheu tomar isso como estímulo para uma mudança positiva na vida. A grande diferença é que não se deixou abater. Nem tão pouco apontou o dedo a quem tem outra forma de lidar. Aliás, como a própria respondeu publicamente:
 
 
 

Não vou entrar em competição com quem tem mais ou menos dores! Nunca pensei tornar público um assunto que é da minha vida pessoal, mas quis partilhar soluções que na minha experiência me fizeram ter uma melhor qualidade de vida! Em qualquer questão o que todos nós seres humanos precisamos é de soluções! Mas é o meu ponto de vista e respeito todos os outros! Desejo as maiores felicidades para todas estas senhoras, mas ocorre-me dizer que “destilar” azedume não contribui em nada para a nossa saúde!

 
Falou sobretudo da influência que o bem-estar espiritual e emocional podem ter na forma de combater as agravantes físicas. Não vejo qual é a parte ofensiva nisso. Não vejo qual é a parte ofensiva na promoção de um estilo de vida saudável e equilibrado enquanto, isso mesmo, tentativa de equilíbrio face ao resto.
Resultou no caso, óptimo. O que penso que devia haver era felicidade por um caso de quem está a batalhar para contornar e a conseguir. Da mesma forma que não condenou quem recorre à medicina convencional, da mesma forma que não se disse dona de nenhuma verdade absoluta, não entendo porquê isso estar a acontecer de forma tão exacerbada do lado contrário.
Falo por mim, no dia em que vir alguém a falar de paralisia cerebral, relacionando-a assim com a vertente emocional, mostrando assim que há caminhos pelos quais, embora não revertendo, se torne mais fácil  suportar ou contornar, o mínimo que me vejo a fazer é aplaudir, e ter espírito aberto para tentar, ou se vir que não é para mim, por, lá está, cada caso ser um caso, aceitar como parte da multiplicidade.
Mas, como sempre, estamos a mostrar-nos Portugal: onde se é preso por ter cão e preso por não ter. Se o testemunho fosse de alguém que levava a questão de uma forma pesada, vitimizando-se até como acontece muitas vezes, não iam faltar discursos de ódio porque "lá vem a história da coitadinha". Agora que acontece o testemunho de alguém que transforma a dor em algo positivo, porque conseguiu - e ainda bem, tomara que conseguíssemos todos - têm vergonha da representação da doença e falta um testemunho verdadeiro? Como se ela tivesse chegado com discursos dogmáticos sobre o que quer que fosse... Limitou-se a partilhar o que para ela deu resultado. Que mal traz isso ao mundo? A mim parece-me é que falta, como tenho dito, humanidade.
 
 
 

O poder do feminino: transformismo, um eco de alma


Há coisas em nós que não se conseguem explicar nem com dois dedos de conversa, nem com meia dúzia de páginas de texto. O efeito lunar que o poder do feminino tem em mim é uma delas. E o pináculo disso, para mim, está no transformismo, por ser uma ode à mulher.
Não me esqueço tão depressa da última noite. É virtualmente impossível ser amante do transformismo neste país e não cruzar amores com a Deborah Kristall (Fernando Santos), a figura máxima actual deste panorama. Sorte das sortes, uma porta leva à outra. Neste caso, o corredor de portas foi circular.
O fascínio levou-me à Gala Abraço 2016. O André E. Teodósio tinha-me levado a Valentim de Barros. Também levou o José Raposo, que foi júri na Gala. Um ano depois, estava a subir ao palco, na Gala Abraço 2017, por um texto sobre Valentim de Barros, pelo José Raposo. Direcção Artística? Fernando Santos.



Demasiada coincidência? Há mais. A Gala Abraço trouxe-me o Paulo Monteiro e o dezanove... foi uma questão de juntar as peças. A noite passada o dezanove fez com que voltasse ao Finalmente, onde tinha ido só uma vez, e desejado ser transparente para poder ficar lá a absorver tudo aquilo.
Abençoada entrevista, abençoado regresso. Como o mundo dá voltas... Como é que isto tudo aconteceu? É cíclico, o meu voltar a pesquisar coisas sobre este mundo, há pouca coisa, mas nunca se sabe se alguém deixou sair mais um pedacinho de magia a público.
Via uma das entrevistas mais recentes do Fernando Santos, quando me vieram intuitivamente à cabeça perguntas que um dia lhe faria, se pudesse. Escrevi-as, porque... bem, porque não se perde nada... estava longe de imaginar é que ia ganhar tanto.
Tive um rasgo qualquer de desfaçatez, mandei as perguntas ao Paulo Monteiro. A próxima coisa que sei é que estava à porta do Finalmente, de salto alto sobre rodas, e as perguntas iam ser feitas. O que eles não sabem, nem quase ninguém, é como tudo isto (passo o duplo absurdo) é como caminhar sobre nuvens.
Vem de há muito tempo, o amor ao transformismo. Nem sabia o que era transformismo. Tinha visto uma reportagem da "Gaiola das Loucas" de Filipe La Féria, na televisão. A Zazá do José Raposo havia-de vir a ser muito mais  do que imaginava. Explica-se essa parte da história pelo texto que leu o José Raposo no lançamento do meu livro Combustão, em Março de 2017 (sim, mais uma das portas do meu corredor circular de coincidências felizes):
 
 
A Inês de 14 anos não sabia o que era transformismo. A Inês de 14 anos viu, absorveu, amou. A Inês de 14 anos sabia estar ali uma das peças da sua verdade, que não sabia como agarrar. Cresci em Fátima. Não se falava "destas coisas", lá. Ainda hoje não se fala.
Não sabia que havia espectáculos dedicados à arte do feminino, sabia só que qualquer coisa, nesse exacerbar por um lado e nesse contraste por outro (a androginia é outro estímulo), chamava por mim.
Descobri pela televisão que havia, algures lá longe em Lisboa, um lugar chamado Finalmente onde havia espectáculos assim. Não imaginava sequer que se pudesse pagar e entrar. Tinha para mim a ideia de um lugar de secretismo inatingível. E ninguém a quem perguntar.
Cada vez que tinha a oportunidade de ir a Lisboa, de fugida, pedia para passar pelas zonas onde se dizia, muito poucas vezes e em surdina, onde elas (travestis/crossdressers) costumavam estar mais vezes. Olhava pelo vidro do carro, e queria ficar ali, na esperança que me aparecesse uma Zazá emplumada... A fluidez de género ainda era um mistério. Já a sentia, só não sabia que existia pela rua livremente e de modo quotidiano.
Cheguei a Lisboa para ficar, finalmente. Mudança das mudanças. Cruzei-me com amigos com esse mundo por casa. E eu sempre na concha. Sempre no medo, sempre no pano de fundo de onde vinha, do inatingível que isso era, do nem se fazer perguntas. Mas sempre com os olhos brilhantes a cada migalha de descoberta.
Fui aprendendo da história do transformismo enquanto espectáculo o pouco que encontrava sem referências nenhumas.
Não sei onde cheguei ao nome Deborah Kristall. Sei que se abriu mundo. Achava mais que óbvio, ainda assim, que não poderia lá chegar, ver por mim. Era assunto para tirar da cabeça. O difícil era conseguir.
E de repente a Gala Abraço, um "Tenho que ir!" mais forte que tudo. Ainda não tinha entrado no S. Luiz quando vi, pela primeira vez aquilo era verdade. Faltou-me o ar como falta a uma criança a dar de caras com uma princesa da Disney.
Finda a noite sabia que tinha encontrado uma das peças que me faltavam há tanto tempo. E tinha a certeza e a vontade assoberbante de fazer parte desse mundo. Só não sabia como.
É aí que se fecha pelo menos esta parte do círculo: Valentim de Barros, José Raposo, a semente lançada.
No ano seguinte a concretização. E com a concretização uma porta aberta para o mundo às cores. Com a porta aberta, o dezanove. E com o dezanove, a maior coroa de glória: afinal podia lá chegar, não só lá cheguei como fui recebida e reconhecida, simplesmente por me querer dar ao que afinal sempre foi parte conjunta da minha raiz.
Não tenho melhor forma de finalizar do que deixar que o momento fale por si. Que seja um círculo de muitos. Que eu faça parte deste mundo, é uma honra e um eco de alma.

- Entrou neste nosso universo, não é?
- Espero que sim!




"I love you... Inês": wandering about how to be human

Screenshot of the movie Angel-A, Luc Besson, 2005
 




I've been lucky enough to find a friend in life who sometimes makes me wake up to reality, even if it is not in the softest way. And I think I lacked that for many years, which explains a lot of the things I want to talk about this time. I mean it like a higher conscience, or at the leastest a more trained one freedom wise.

Yesterday, like many days, talking about anything and everything was enough to send me into a spiral of way too deep of a philosophical state to not question my own human nature.
It went down something like this: ideals of beauty - body image - self-esteem - emotional expression - human nature. My mind is like a high speed train, more often than I'd want it to be.

Truth is, a few moments left alone and I got myself thinking wether or not I was broken in some way in the sense of what means to be human. I can't help but think some of the wires in my circuit are cut, or at least blocked in some way.

And everytime she shakes my ground, luckily for me it is often, at least a tiny spark is able to go through. It is like she connects two wires of a broken electricity system, and by holding them together it works. That's what she does to my mind. And it's not that I don't know where the wires are myself, I do have somewhat of a self-conscience, I think. It's that I don't know how to keep them together on my own, at least not yet.

It's not easy, accepting myself. So much so that self-acceptance has been one of the reccuring themes since I started this blog. My mind is not fix, my sense of self is not fix, my sense of identity is not fix - I recon these might be common traits to everyone - but there is somewhat of a struggle on looking in the mirror and grasping "this is me", not because I don't accept it - I mean, what choice do I really have anyway? - but because I don't really recognise it as the notion I have of me. I don't know why that is, exactly. It has been a life long matter, feeling my body connected to my mind. I'm not talking about cerebral palsy here. I'm talking of the strange need of having to sometimes touch my own body repeatedly and thinking "hey this is you, Inês is you, you are here, this is your hand, feel it, this is you.". And that alone not being an easy process... might be part of my "broken or at the leastest blocked" wires. I must say tattoos are one of the things that have helped me the most so far on trying to connect with myself. The sense of "making" a new part of me on the spot, along the pain of the needle, really force me to inhabit my own body and physically connect to the moment while it lasts.

That being said, it goes further. You'd never think of a writer, a poet even, as someone who struggles to express themselves emotionally, on conveying their inside ongoings externally, right? In my case at least, wrong.


Excerpt of the movie Angel-A, Luc Besson, 2005


She ended up sending me this movie scene above, which portrays all of this way too well. It is what ultimately pushed me to even write this. Writing always seems to settle things in for me.
I don't know what it is exactly, but I have some kind of wall put up about showing affection, too. Maybe I shouldn't be saying this for the whole internet to read either, but one's gotta open up some way. This is exactly the core here: I think I often write so much and so deep because I start overflooding inside, because I am unable to express in the moment what I feel, what I think, act upon it. Almost like I live in a glass shell just looking outside, and even so hiding my face if one tries to look me in the eyes too much. What happens it what remains unsaid, unexpressed, keeps circling inside my shell.

Me being a poet, I set fire to it and let it overflow into my written words. Which is why I can't even hug people who I really love, simply because I want to, there is that block - but then, when they come to hug me, it gets so intense that it becomes clear (at least for those who interpret me fairly decently, like her) that I am obviously trying to compensate for what I couldn't come to say or do. It is really my inside fighting to show through on the best way I found. Either that or I take a couple of sentences and write a huge text on what they have said, and express myself poetically, like I was saying. Beautiful. But also disfunctional. I write more than I live and maybe I have more of a writer than of a human nature. At least for as long as my circuit remains damaged.

The ability of being emotional towards others is also linked to the ability of crying in front of them. Which is another broken circuit for me. I am too used to having to put up a strong face. It got so ingrained that it is completely antagonic, how much I write about vulnerability and how much I am then not able to make myself vulnerable and open to others fully. I don't know why this is. It acts like a panic or a phobia or a trauma, because anything that might lead to it I avoid it. And that's not easy, we are talking about my main body of work theme.

I suppose all this makes me sound fake. I invite others to be vulnerable to me, then when the time comes for the opposite, I block. I do know this sounds unfair. I do know the only ones who get that I'm not really a cold ass pretender poet are the ones who are able to see my wires and hold them together and try to get the spark going. To be fully honest, it is the first time this has happened to me in such a deep way. It is the first time I have even acknowledged my circuit's faults in such a deep way. And it really hurts, the notion that I am damaged in yet another way more.

I don't know how she doesn't love me any less for all this. God knows how many times she tries holding my wires and I fight back tears so hard that my spastic body betrays me and it becomes obvious from miles away, because I tense up, damn cerebral palsy... but also thanks cerebral palsy for turning my whole body into an outlet of "I'm feeling", at least. And then I end up in silence and thank the universe when she decides it's time for a joke or a change of subject. She knows it, I'm sure she knows every time that she is sending me into a spiral of exploring my wires yet again. She knows it hurts, that's why she ends up making me laugh after, I'm sure she knows I'm fighting back tears for not being sure how "to human". And yet she stays. It baffles me, it really does. She sees beneath the damaged wires, how? And why is it so unique?

I tried making it easier to see. For the wrong people. All they did was rip even more wires apart. But, yet another thing the taught me is that it's not new people's fault that the past ones have hurt us, and we'd be unfair if we didn't let ourselves try again. It is what I did, with her. It is also what she did, with me. As surreal as it seems, here we are. Here are my wires being held for the first time.
This all goes in circles: I feel less of a person for all this, I get into my head I don't deserve human connections for all this, I shut off more, I feel even less of a person. And then there is the coming to terms with my physical being as well, and now yes I mean cerebral palsy, I mean body image, I mean gender expression, I mean all of that.

I do want to gain another posture. I do want to open up, I do want to stand up and speak up and feel up and free myself up from all of this which has held me down for way too long. The only path seems to be keep trying to grasp on how to hold my wires.

And I really can't help but to feel thankful to her for standing by my side. No matter what comes next, I think I always will be. Because diving into the dephts of someone who already is as self-exploratory as me, and still be able to help me understand how to break my own circles... that's a lot. That's a whole lot. No wonder she was the ground shaker behind my performance (Unbreak)able, it all started with wanderings just like these, that she induced. It was the first try of breaking through the circles, and not bad I think. I can only hope there are more to come.

"Eu amo-te... Inês": divagação sobre como ser humano





Screenshot of the movie Angel-A, Luc Besson, 2005




Tive a sorte de encontrar na vida uma amiga que às vezes me faz acordar para a realidade, mesmo que não seja da forma mais suave. E acho que isso me faltou por muitos anos, o que explica muitas das coisas que quero falar desta vez. Quero dizer que é como uma espécie de consciência superior, ou no mínimo uma mais treinada no que toca a liberdade.
 
Ontem, como em muitos dias, falar de tudo e de nada foi o suficiente para entrar numa espiral de um estado filosófico demasiado profundo para que não conseguisse evitar questionar a minha própria natureza humana.
 
Desenrolou-se mais ou menos assim: ideais de beleza – imagem corporal – auto-estima – expressão emocional – natureza humana. A minha cabeça é como um comboio de alta velocidade, muito mais vezes do que as que eu queria que fosse.
A verdade é que bastaram alguns momentos sozinha e comecei a pensar se na verdade estava ou não avariada, no sentido do que significa ser humano. Não consigo evitar pensar que alguns dos fios no meu circuito estão cortados, ou pelo menos bloqueados de alguma forma.
 
E sempre que ela me tira o chão, felizmente para mim é usual, pelo menos uma pequena faísca consegue passar. Como se ela ligasse dois fios de um circuito eléctrico estragado, e por os segurar juntos, funciona. É isso que ela faz à minha cabeça. E não é que eu não saiba onde estão os fios por mim própria, eu tenho alguma auto-consciência, acho eu. É que não sei como os manter juntos sozinha, pelo menos por enquanto.
 
Não é fácil, aceitar-me a mim mesma. Tanto é que auto-aceitação tem sido um dos temas recorrentes desde que comecei este blog. A minha mente não é fixa, o meu sentido de self não é fixo, o meu sentido de identidade não é fixo – reconheço que isto podem ser traços comuns a toda a gente – mas há uma certa batalha em olhar-me ao espelho e interiorizar “isto sou eu”, não porque eu não o aceite – quer dizer, que alternativa é que eu tenho mesmo? – mas porque não o reconheço como a noção que tenho de mim. Não sei porquê, exactamente. É uma problemática que durou a vida toda, sentir o meu corpo ligado à minha mente.
 
Não estou a falar da paralisia cerebral aqui. Estou a falar da estranha necessidade de às vezes ter que tocar no meu próprio corpo repetidamente e pensar “hey, isto és tu, a Inês és tu, tu estás aqui, isto é a tua mão, sente-a, isto és tu.”. E já o facto disso não ser um processo fácil… pode ser parte dos meus “fios cortados ou pelo menos bloqueados”.
Tenho que dizer que as tatuagens são uma das coisas que mais me ajudou até agora a tentar ligar-me a mim mesma. A sensação de “fazer” uma nova parte de mim naquele momento, juntamente com a dor da agulha, forçam-me muito a habitar o meu próprio corpo e a ligar-me fisicamente ao presente enquanto dura.
 
Posto isto, as coisas vão mais longe. Nunca pensariam num escritor, um poeta até, como alguém que tem dificuldade em expressar-se emocionalmente, ou retractar aquilo que lhe vai dentro externamente, certo? Pelo menos no meu caso, errado.




Excerpt of the movie Angel-A, Luc Besson, 2005
 
 
Ela acabou por me mandar esta cena do filme , que descreve isto tudo demasiado bem. Foi o que me incentivou sequer a escrever isto. Escrever parece sempre que consolida as coisas cá dentro, para mim.
 
Não sei precisar o que é, mas tenho uma espécie de muro erguido no que toca a mostrar afeição, também. Talvez não devesse estar a dizer isto para toda a internet ver, mas de alguma forma tenho que me exteriorizar. É exactamente esse o núcleo aqui: acho que muitas vezes escrevo tanto e tão profundamente porque já não caibo dentro de mim, porque não consigo expressar no momento o que sinto, o que penso, e agir de acordo com isso. Quase como se vivesse numa concha de vidro apenas a olhar para fora, e mesmo assim a esconder a cara se me tentarem olhar demasiado nos olhos. O que acontece é que aquilo que não é dito nem expressado acaba por ficar às voltas dentro da minha concha.
 
E eu, sendo poeta, inflamo isso e deixo que transborde para as minhas palavras escritas. É por isso que, apesar de que nem consigo abraçar pessoas que realmente amo simplesmente porque quero, há esse bloqueio –depois quando elas vêm abraçar-me, fica tão intenso que se torna claro (pelo menos para os que me saibam interpretar minimamente, como ela) que estou obviamente a tentar compensar pelo que não consegui dizer ou fazer. Na verdade, é o meu interior a lutar para se deixar ver, da melhor forma que encontrei.
 
Ou isso ou sou capaz de pegar em algumas frases que tenham dito e escrever um texto gigante sobre isso, expressar-me poeticamente, como estava a dizer. Lindo. Mas também disfuncional. Eu escrevo mais do que vivo e talvez tenha mais natureza de escritor do que de humano. Pelo menos enquanto o meu circuito se mantiver avariado.
 
A capacidade de ser emocional perante os outros também está ligada a ser capaz de chorar à frente deles. O que é outro circuito avariado para mim. Estou demasiado habituada a ter que me mostrar forte. Enraizou-se tanto que é completamente antagónico o quanto eu escrevo sobre vulnerabilidade e o quando não consigo tornar-me vulnerável e aberta aos outros completamente. Não sei porque isto acontece. É como um pânico ou fobia ou trauma, porque qualquer coisa que possa levar a isso eu evito. E não é fácil, estamos a falar de um dos meus principais temas de trabalho.
 
Suponho que isto tudo me faça parecer falsa. Convido os outros a ser vulneráveis para mim, e quando chega a hora do oposto, bloqueio. Tenho noção que isto é injusto. Tenho noção que os únicos que entendem que na verdade eu não sou uma poeta fingidora fria são os que conseguem ver os meus fios e juntá-los e tentar que a faísca passe. Para ser completamente sincera, é a primeira vez que me acontece de forma tão profunda. É a primeira fez que reconheço sequer as falhas do meu circuito de forma tão funda. E dói muito, a noção de que sou defeituosa de mais uma forma ainda.
 
Não sei como é que ela não me ama menos por isto tudo. Sabe Deus quantas vezes ela tenta agarrar nos meus fios e eu luto contra as lágrimas com tanta força que o meu corpo espástico me trai e se torna óbvio a milhas, porque fico tensa, raios partam a paralisia cerebral… mas também obrigada paralisia cerebral por transformares o meu corpo num demonstrativo de “estou a sentir”, pelo menos. E depois acabo por ficar em silêncio, e agradeço ao universo quando ela decide que é altura para uma piada ou para mudar de assunto. Ela sabe, tenho a certeza que ela sabe sempre que me está a mandar numa espiral de exploração dos meus próprios fios, uma e outra vez. Ela sabe que dói, por isso é que depois me faz rir, tenho a certeza que ela sabe que estou a esconder as lágrimas por não ter a certeza de como é que se é humano. E ainda assim ela fica. É assoberbante, é mesmo assoberbante. Ela vê além dos fios, como? E porque é que isso é tão único?
 
Já tentei fazer com que fosse mais fácil de ver. Para as pessoas erradas. Tudo o que fizeram foi arrancar mais fios de mim. Mas outra coisa que ela me ensinou é que não é culpa das pessoas que as do passado nos tenham magoado, e seríamos injustos se não nos permitíssemos a nós menos voltar a tentar. Foi o que fiz com ela. E também foi o que ela fez comigo. E por muito surreal que possa parecer, aqui estamos nós. Aqui estão os meus fios a ser segurados pela primeira vez.
 
É tudo circular: sinto-me menos pessoa por causa disto tudo, meto na cabeça que não mereço ligações humanas por causa disto tudo, desligo-me mais, sinto-me ainda menos pessoa. E depois há também o aceitar o meu corpo fisicamente, e agora sim estou a falar da paralisia, da minha imagem, da minha expressão de género, tudo isso.
 
Eu quero ganhar outra postura. Eu quero ser mais aberta para as pessoas, defender-me, dizer o que penso e libertar-me de tudo isto que me tem mantido presa há demasiado tempo. O único caminho parece ser continuar a tentar entender como segurar os meus fios.
 
E não tenho como não me sentir agradecida a ela por ficar ao meu lado. Independentemente do que vier, acho que vou ser sempre grata. Porque mergulhar nas profundidades de alguém que já é tão auto-explorado como eu, e ainda assim conseguir ajudar-me a entender como estilhaçar os meus próprios círculos… é muito. É mesmo muito. Não admira que tenha sido ela a induzir o ficar sem chão que está por detrás da minha performance (Unbreak)able, começou tudo com divagações como esta, que foi ela que instigou. Foi a primeira tentativa de transcender para lá dos círculos, e não foi má, acho eu. Só posso ter esperança que mais estejam para vir.

(UNBREAK)ABLE: a wheelchair performance


 


 

 

"Quis despir-me. Na verdade, queria poder despir mais que o corpo. Depois das roupas queria tirar a pele. Depois da pele queria arrancar a carne. Depois da carne desfazer os ossos entre os dedos e os dentes. E desse nada que restasse, ver nos meus despojos até onde se demarca a minha diferença. Isto sou eu. Não sei o que isso quer dizer. Não sei a forma certa de me olhares, não há forma certa de me olhares, não há forma certa de coisa nenhuma, era por isso que não sabia como fazer nada disto. Partiria tudo do pressuposto do que vês quando me olhas. E a verdade absoluta de mim, nem eu a tenho.



Uma pessoa, por acaso numa cadeira, ou uma cadeira com uma pessoa? Isto sou eu. Há 22 anos que ansiava pela minha própria libertação. Descobri a arte como espectro das minhas prisões. O alimentar e o alimento circular dos meus fantasmas. Tempos a fio procurei um grito de fénix. Mais tarde percebi ser cíclica. Caminhar lado a lado com a morte, respirar cara a cara com o frágil, transpirar pele a pele com o vácuo, é isso que me renova, é isso que me mantém. Será um dos meus poucos vícios, injectar sal nas feridas.



Quis mostrar esse tanto mais. Para lá de posto em causa o diferente e o igual, o que fica por ver. Não sabia como. O meu corpo, por si só, grita teses demasiado alto para que o resto sobressaia.



Então, quis ir mais longe ainda: fiz da nudez ferramenta, das cicatrizes néones para um olhar aberto, das deformidades um púlpito por onde te trago a olhar-me desde mim. E despojei o caminho expectável do resultado artístico. Ao que em mim há de poeta, retirei a poesia. Deito-me por terra, o nu do corpo espelha apenas a erupção que há-de vir. Faço da sujeição à minha própria infimidade desmascarada, despudorada de artifícios, o veículo para a minha própria libertação.



Era isso que me faltava – não eram poemas, não era a demonstração óbvia do físico per si, não era o simbolismo artístico de uma identidade fluida de género, ou o fio da navalha da morte – isso é o que já sou todos os dias. Faltava-me a crueza de me deixar ao precipício de mim, puxar da raiz de todos os traumas e deixar que a realidade tomasse o seu curso de explosão. Por uma (e de uma) vez, sem estéticas, ser-me veículo e permitir-me a chorar todas as lágrimas. Incorro no risco do sufocante demasiado, ciente disso como na vida, acompanhar-me-ão os que souberem ficar, do maior resto não rezará a minha história. Hoje enfrento os meus fantasmas, cultivá-los-ei alimentados da minha pele, suor, lágrimas, e tudo o mais que este deliberado incurso no precipício proporcionar, para que jamais me deixem. É deles que voo. A minha vida é isso – vertigem."



 



(Texto produzido para contextualização do processo criativo da performance (Unbreak)able: - Estudos de Performance - Licenciatura Estudos Artísticos, Artes do Espectáculo, FLUL 2017.)